Próxima ao teto flutua uma quiche

Acordo às 2:47 da madrugada. Tento enganar a insônia, mas próximo ao teto do quarto flutuam pedaços das notícias que recebi durante o dia, tarefas que terei que cumprir pela manhã e uma fatia de quiche king size. Penso em sair para comprar pão. Penso em sovar um pão. Viro para a esquerda. Penso em ler um livro legal. Penso em ler um livro chato. Viro para a direita.

Se for indigestão, não é pela quiche, que eu mesmo fiz e estava excelente. Mais provável que seja o excesso de reality shows culinários – vi dois na noite passada. Viro para esquerda. Penso naquelas crianças norte-americanas competindo na cozinha e me lembro do Érico Veríssimo, que quando viajou para os EUA na década de trinta do século passado, conheceu Shirley Temple e disse que em Holywood havia atores canastrões e as crianças eram treinadas desde cedo para serem “canastrinhas”. Cito de memória. Não tenho certeza que ele encontrou a Shirley Temple. Viro para o teto, onde ainda flutua a quiche. Não há nada mais surreal do aquelas crianças que fazem linguiça, papardelle e dacquoises com a mesma naturalidade de quem faz lasagna congelada. Observe os cabelos e as roupas cuidadosamente escolhidas por personal stylists, no intuito de conferir a cada criança uma personalidade distinta e presença de palco.

Pego um livro chato, vou para sala, abro o computador. Fujo do Facebook: estou insone mas não deprimido. Respondo um email de uma amiga que pede opinião sobre um texto. É sobre cozinheiros e como eles vão salvar o planeta. Pelo Twitter, sou informado do suicídio de um chef em Chicago. Jovem demais para partir. Eu o vi palestrando no TED, há três anos, cheio de entusiasmo pela gastronomia molecular e nos oferecendo quatro pedaços de papeis comestíveis cujo sabor mudava de acordo com a ordem de ingestão dos papeis. Fico pensando que o papel de chef pode lhe ter causado uma indigestão (e não é o primeiro caso de suicídio este ano).

O sono não volta mesmo. Penso em ligar a TV, mas a essa hora da madrugada só tem reprise de programa culinário. Fico pensando num programa em que as pessoas tenham que cozinhar em silêncio, seja proibido competir e ninguém receba ingredientes da caixa surpresa. Não é uma boa ideia, acho que vai dar sono. O livro que eu trouxe para a sala chama-se “Haverá a idade das coisas leves”.

umlitrodeletras

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *