Domingo, 19 de abril, sete da manhã. Fui a segunda pessoa a entrar no mercado. Fiz as compras correndo. No açougue, um radinho escondido tocava Roberto Carlos, o aniversariante do dia. Prendo a respiração ao passar perto da meia dúzia de funcionários que repõe os estoques. Chego em casa e percebo que esqueci alguns itens. Ficarão para a próxima saída.
Há um lobo lá fora. Mesmo invisível, ele arreganha os dentes, lembra que ninguém está seguro e nos põe para dentro de casa e para dentro de si. Até a máscara é uma forma de convivência com a própria respiração com a qual não estávamos habituados.
Em 1942, a escritora e jornalista Mary Frances Kennedy Fisher escreveu “Como Cozinhar um Lobo”. Era o auge do racionamento de alimentos nos EUA devido à II Guerra Mundial. Nos vinte e dois capítulos que compõem o livro, ela descreve como cozinhar em tempos de exceção. Com poucos ovos, sem ovos, sem açúcar, sem saber cozinhar. Com ironia, com observações perspicazes sobre as pessoas, a vida, o apetite, “esse lobo universal”, frase do Shakespeare que ela cita no capítulo: “Como Manter-se Vivo”.
Desde que iniciei o período de isolamento, venho relendo o livro de maneira alongada, esmiuçando trechos, voltando capítulos e fazendo algumas receitas. Em cozinha profissional, “alongar” é acrescentar água ou caldo a um creme para dilui-lo mais. Fiz isso ontem, no jantar, com uma sobra de sopa de cebola do dia anterior. Era uma porção, com meia xícara de água viraram duas, com um pouco de parmesão e pimenta do reino para reforçar o tempero.
Escrever sobre a M.F.K Fisher é como fazer uma desenho de giz de cera para homenagear seu pintor favorito. Publicar é visitar o museu e pendurar o desenho ao lado do quadro. Correndo o risco de diluir uma escritora onde tudo é essencial, passo a publicar todas as quintas e domingos a minha leitura ede um capítulo de “Como Cozinhar um Lobo”, assim como receitas inspiradas pelo livro (deve ser isso que Roberto Carlos dizia na canção: “eu tenho tanto pra lhe falar mas com palavras não sei dizer”).