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Viajar e comer

Russos e garfos

Lebre, L'Ami Jean, Paris

A comida sai voando e vai parar na cara (no decote, no colo, nas coxas) de um pobre coitado que come distraído. A cena dá nome, aliás, à categoria: humor pastelão. Você nem acha mais graça, de tantas vezes que já viu no cinema e na TV. E vou confessar: não tem mesmo graça nenhuma quando você é o personagem principal — o responsável pela comida que sai voando.

Semana passada jantei no L´Ami Jean, um restaurante pequeno em Paris que tem fãs que vão de Ruth Reichl à Roberta Sudbrack. Ou seja, lugar de respeito, que serve carnes de caça e um arroz doce (riz au au lait) inesquecível.

A cozinha é minúscula. O salão é pequeno, e as mesas são grudadas. Entenda grudado, neste caso: não há espaço entre as mesas. Para você se sentar, o garçom puxa a mesa, você entra, ele empurra a mesa de volta e você não sai mais.

Cheguei quinze minutos antes do horário da minha reserva, fiquei por ali esperando. Ao meu lado, outro cliente aguardava. Fino, vestia camisa e abotoadouras que anunciavam um belo bônus anual e um excelente plano de aposentadoria. Tomava um vinho, e lia um guia que eu não consegui notar se era grego ou russo.

Nossas mesas desocuparam ao mesmo tempo. Para sentar-se, a coreografia, O garçom puxa a mesa, o moço senta, o garçom empurra a mesa, o garçom puxa a outra mesa, eu sento, o garçom empurra a mesa. Mais grudado que uma poltrona da TAM.

O meu vizinho só falava inglês e acabei ajudando ele com a tradução do cardápio enquanto o garçom não chegava. “Codorna?” “Small chicken”. “Ganso?” “Big chicken”. Depois a conversa morreu e gente fingia que não estava um grudado no outro até que chegou a entrada, e descobrimos que tínhamos pedido exatamente o mesmo: poêlée de champigons. Prato principal e, de novo, a coincidência.

A essa altura, a conversa já rolava solta e ele me me contava da sua vinda ao Brasil ano passado. E na empolgação — yes!, Brazil, samba, favela, churrascaria — um movimento em falso com o garfo. Lièvre royal, como dá para ver na imagem, é daqueles pratos que não fotografam bem. A carne que fica uma semana marinando e vem à mesa se desfazendo em um molho denso e escuro, que deve resistir ao mais poderoso Vanish. Imagine o garfo virando. Fazendo um barulho na borda do prato (téimmmnnnnn….). Projetando como um míssil a porção de comida em direção à camisa, à manga, ao alvo.
Na sequência dos mais constragidos pedidos de desculpa (lembre-se, não dá para correr, o garçom tem que puxar a mesa para você sair), ele pede para eu moer sal na mancha — cena meiga acompanhada pelas mesas mais próximas.
Conversamos mais um pouco, ele me deu o cartão. Paguei a conta, e sumi. No metrô, abri o Google e digitei o nome. Basicamente eu tinha detonado a camisa do presidente do maior grupo de mídia russo. Levantei a gola do sobretudo, abaixei o chapéu, caminhei rápido para o hotel. Fiquei longe de russos e garfos pelo restante da viagem.

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Reflexão Viajar e comer

Das coisas simples da vida

Banca de legumes, Boulevard Raspail, Paris

Último dia em Paris. Acordo ansioso, faço listas de lugares ainda por visitar, consulto o mapa do metrô, Google Maps, conto e conometro os passos para aproveitar a cidade e não perder tempo na máquina impessoal de teletransporte que é qualquer aeroporto do mundo.

Saio logo cedo para buscar pão na Poilâne, a boulangerie famosa que hoje já tem 3 lojas em Paris e uma em Londres. Visitei ontem a loja do Marais, e embora tenha comido uma tartine deliciosa com queijo fresco e legumes, fiquei profundamente incomodado com a estética “nespresso” da loja, toda clean e simétrica e despojada. Clean, não: assética. Achei que em vez de guardanapo, trariam álcool gel para eu limpar as mãos. E os pães, embora ótimos, tinham aquela cara de manequim em vitrine de loja, que se tivessem a chance fugiriam dali.

Desço a rua Cherche Midi à procura da padaria, refazendo mentalmente a lista de lugares para visitar e, de repente, me deparo com uma feira livre na esquina do Boulevard Raspail. Queijos, pães, frutas, legumes, frios. Comida pronta: sopas, tortas, frangos. Muitos tipos de mel, sabonetes naturais. E todos os legumes e frutas arranjados/desarranjados sem nenhuma teoria de display de ponto de venda. Mas vivos! É inimitável – em São Paulo, alguns supermercados tentam, mas seus legumes ainda parecem os tristes manequins posando em vitrine.

Esqueci meus planos. Comprei uma galette de pomme de terres quentinha — batata, cebola, queijo ementhal. Sentei num café. Pedi um expresso. O casal ao meu lado esperava a netinha para passear. Puxamos conversa. Rimos. E a feira, logo ali na frente, me lembrava das coisas simples da vida: água, farinha e um domingo de sol.

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Greve dá fome


O pessoal do centro notou primeiro. Mas logo a notícia se espalhou pelas regiões da Paulista e da Berrini. À medida que avançava o horário do almoço, aumentava o número de pessoas na rua, em blocos, sem entender o que acontecia. Na rua Amauri, por volta das 13:00, a polícia interfere para desfazer a confusão: carros formam filas nervosas, bloqueiam a rua. Começa um buzinaço na Faria Lima. Executivos param SUVs nas calçadas, cobram informação dos valets, ligam imperiosos para as secretárias – “o restaurante está fechado, estou atrasado, faça alguma coisa!”. Nos Jardins, peruas insistem: “Nem uma saladinha?” Mas os valets também não tem informação, chegaram e foram surpreendidos pelas portas fechadas.

Na av. Santo Amaro, duas ou três dogueiros vendem todos os cachorros-quentes em quinze minutos. Quando não há mais pão nem salsicha, oferecem saquinhos de batata palha a preço extorsivo. Correm para o atacadista, mas outros dogueiros mais rápidos já desfalcaram as gôndolas. Os que perderam a disputa feroz pelos lanches voltam para a empresa e atacam as máquinas automáticas de venda, que pouco a pouco se esgotam — primeiros os sanduíches, depois os biscoitos, por fim as frutas desidratadas. Ninguém aparece à noite para reabastecê-las. Na Av. Paulista, a polícia faz vistas grossas para o chinês que prepara yakisoba. A fila é imensa, mesmo com as pessoas sabendo que não há para todos.

A prefeitura suspende o rodízio de carros, e algumas empresas liberam os funcionários (famintos) mais cedo. No metrô, nas ruas, nas rádios, todos comentam. Cozinheiros em greve. Sem aviso prévio, sem explicação, sem causa aparente, sem movimento organizado. O que se esperava, naturalmente, é que no dia seguinte tudo estivesse normalizado. Os executivos, por garantia, desmarcam os almoços. Alguns tentam contratar caterings, mas os telefones não atendem.

Quando amanhece, com os restaurantes ainda fechados, as empresas improvisam copas nas salas de reunião, com fornos de microonda e uma escala de uso por departamento pregada na porta. Os escritórios cheiram a lasanha quatro queijos, pizza de atum e hamburgueres semiprontos. O RH cria um comitê de contingência, e a primeira resolução é proibir pipoca — o som e o cheiro da pipoca, diz um especialista, atrapalha a produtividade. O sindicato rebate que a fome atrapalha muito mais.

Pouco a pouco, começam a desaparecer produtos congelados das prateleiras dos supermercados. A indústria não consegue repor com agilidade, e surge um mercado negro de escondidinhos congelados. As revistas e blogs especializados oferecem receitas práticas para serem feitas no trabalho: lasanha de cream cracker com requeijão, pudim de bolacha de maisena com leite condensado.

E sobre o grevistas, todo o tipo de boato. Uns falam em uma grande ação de marketing da indústria alimentícia. Ou que assinaram um manifesto secreto seguindo grandes chefs mundiais. Outros falam em vírus misterioso que se espalhou pelas cozinhas. Uma noite, surge um manifesto rabiscado nas portas de vidro de um restaurante. Sem assinatura, declara estar cansado da ditadura dos cardápios. Quer cozinhar o que bem entende. Se o cliente não quer comer rabada ou buchada ou língua bovina é seu problema. Que nunca mais vão servir bife bem passado. Que vão usar leite cru, tachos de cobre e colheres de madeira. Que quem quiser nutella que traga da sua casa. E claro, querem aumento de 30%, mais reposição da inflação e vale-refeição.

Aparentemente os cozinheiros se reúnem em festas noturnas, cozinham juntos pela madrugada e comem diretamente da panela, com muita pimenta do reino. Pela manhã, a polícia só encontra restos de panelas queimadas, fogueiras em brasas e um ou outro thermomix ainda em funcionamento.

As empresas fazem horários especiais para que todos possam preparar suas refeições em casa. No domingo as feiras-livres terminam mais cedo, com bancas vazias. Os feirantes explicam pacientemente: “Não há feijão pré-cozido. Tem que ficar de molho. Traga a panela de pressão que eu ensino a fechar.” “Não recomendo levar sardinha na marmita.” Crudivoristas aproveitam os espaços vazios das barracas de pastel para distribuir folhetos sobre os benefícios da sua dieta.

Pouco a pouco, um novo ritmo se instala na cidade grande. Pessoas redescobrem velhos livros de receita das avós. Depois redescobrem as avós. Pela manhã sente-se cheiro de pão assando nos apartamentos. A produtividade nos escritórios começa a voltar ao normal. Ninguém sente falta dos cozinheiros.

E novamente, o pessoal do centro é o primeiro a descobrir. “Os restaurantes estão abrindo!”. Passaram a noite fazendo faxina. Tudo limpo, mesas postas, até vasinho com flor em mesa de restaurante self service. Os clientes voltam ressabiados. Já não engolem qualquer coisa. Fazem perguntas o tempo todo. “De onde vem essa vagem?” (reconheceram a vagem!) “Como foi preparada esta carne?”. Os cozinheiros parecem mais bronzeados. Colocam a cabeça na boqueta e sorriem. Ninguém pergunta onde estiveram. Todos comem.

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Os que leem os que comem

Revistas, por Marcos Garcia.Os que comem fotografam, blogam, tuítam. Nunca a comida foi tão retratada, descrita, comentada e criticada. Com tanta informação online, eu imagino que um publisher de revista de gastronomia tenha, hoje, um baita desafio na mão. A revista Gula de julho, por exemplo, traz uma matéria extensa e bem fotografada da nova coleção de pratos da Roberta Sudbrack. Entretanto, a coleção lançada em maio já fora resenhada, alguns dias depois, pela Constance Escobar, no blog http://www.praquemquisermevisitar.com.br. Que espaço sobra, então, para as revistas?

Um argumento utilizado com frequência é o de que há blogueiros demais, e curiosos demais, sem a especialização nem o conhecimento necessário para falar do assunto. Existe, aliás, uma reação de canseira a tantos dedos e mouses apontados para filés fora do ponto, e uma sensação de que a crítica não especializada é que passou do ponto.

Acho que aqui há uma confusão de papéis. Nas redes sociais, muita gente acredita que está fazendo crítica, quando, na verdade, está fazendo controle de qualidade. Aliás, um consumidor tem o direito de reclamar se o produto que compra não está dentro de um padrão adequado de consumo. O que, aliás, sempre pode ser feito com elegância, afinal, a rede é social e não um faroeste.

Mas reclamar da qualidade não é crítica. O papel da crítica é outro — ela pode até apontar um desvio de execução de um prato a partir do cânone existente — mas seu interesse está mais em por quê aquilo acontece, e para qual tendência aponta. Na irritação legítima contra o exército de agentes de qualidade que se perfila nas redes sociais, os criticados também esquecem que a crítica tem seu espaço e ajuda a formular a concepção do estamos bebendo e comendo.

Voltando às revistas, se o caminho delas é aprofundamento, especialização e rigor — oras, então é importante que invistam nisso. E não escrevo este post para ficar apontando o dedo — embora, como consumidor, e com alguma noção do assunto, vez por outra eu me irrite com alguma deslize que escapou da edição e acabe ventilando isso pelo Twitter.

Voltando ao caso da Gula, a matéria acrescenta pouco ao que já se sabia da coleção do RS, embora, não custa repetir, é uma matéria bonita de se ver. Acho, aliás, que a Gula tem uma boa produção fotográfica e é daquelas revistas que dá vontade de comer. Em termos de matérias, pelo menos ao se comparar as edições de julho, há uma evidente aposta, similar à da revista Gosto, por matérias de caráter histórico. A Gula traz fondue e Frida Kahlo, a Gosto traz sanduíches e James Dean. Para o leitor que busca história, são o veículo perfeito.

A Prazeres da Mesa já é um instagram do cenário da restauração brasileira. Não há veículo melhor para saber quem está cozinhando o quê em que parte do Brasil e do mundo. À turma do controle de qualidade, eu sugeriria, em vez de caçar defeitos, o exercício intelectual de analisar quais os caminhos da gastronomia atual que se desenham nas 33 receitas. A própria revista pode também abrir mais espaço para esta análise.

Tenho dificuldade para definir a revista Menu, mas a matéria de capa, sobre carne de caça, é o melhor exemplo, neste mês de uma matéria que fez um bom exercício de trazer desde receita até questões de manejo e produção de animais “selvagens”. Também fala sobre sustentabilidade sem precisar citar o assunto nominalmente (um engano comum não restrito a revistas de gastronomia).

Não falei aqui da diVino Sabores, que não circula em julho, nem da Casa&Comida, para citar outras revistas que compro esporadicamente, e cujos projetos gráficos sempre me intrigam. Como eu disse no início, os publishers têm um baita desafio na mão, que não se resume apenas a alguns pontos que comentei aqui.

O sol nas bancas de revistas me enche de alegria e preguiça. Já faz tempo que o Caetano perguntou: quem lê tanta notícia? Os que comem, leem.

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A marcha das baratas

Num cantinho despercebido do Estadão de ontem, matéria fala sobre produtor de insetos que procurou o governo para pedir a legalização da venda de insetos para alimentação humana. Aprendo com a matéria que há mais de 1.400 espécies de insetos utilizados como alimentos, e todos com um alto valor proteico.

Se a gente lembrar que Coca-Cola foi concebida como remédio, tem um gosto estranho, e no entanto, por força do marketing, é um sucesso de vendas, tudo é possível com os insetos. Mas a questão não está só na legalização. A gente pode até fazer uma marcha pela legalização da barata (já que outros baratos também estão buscando legalização).

Mas o que vai mudar o status das baratas e das lagartas é o glamour. A lagarta não pode ter vergonha de ser gostosa. Não adianta dizer por aí que tem 37% de proteína na sua composição. A lagarta tem que chegar à alta gastronomia. Virar tendência. Daí para o escondidinho de lagarta congelado é um passo.

Lagartas, uni-vos.

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À minha horta, torta


Minha horta sobrevive. Já colhi umas três dúzias de laranja kinkan, aprendi a secar o manjericão no forno (amigos, aguardem ervinhas no aniversário, no Natal, no aniversário do ano que vem), e plantei uma capuchinha que nem murchou.

Certo de que aprendi a controlar a água (em que pese um pé de tomilho morto por afogamento), resolvi passar para a próxima fase e também alimentar as plantas. O que faz um homem moderno para alimentar sua família e seus gatos? Vai ao supermercado, claro, e compra comida comida em caixinhas.

Para gatos, há uma quantidade de produtos invejável: “Sabores do Mar”, “Beauty Fit”, “Sensações Marinhas”, “À Moda do Chef”, “Exigent” e “Light” (nem listei todos). Animal de estimação, hoje em dia, passa incrivelmente bem. O grau de sofisticação da comida acompanha as mais recentes tendências de alimentação humana. É possível encontrar rações com carnes exóticas, como canguru, antioxidantes e outros componentes funcionais e até comida vegetariana para cães (aprendi tudo isso com o Mukund Parthasarathy, um cientista consultor da indústria de alimentação para animais).

Mas então eu estava no supermercado e procurava comida para plantas. Tinha caixinhas de adubo para orquídeas e caixinhas de torta de mamona para árvores frutíferas, hortas e gramados. Peraí, só isso? Como as plantas modernas podem sobreviver?

Poxa vida, pessoal de marketing, vocês ainda não descobriram esse nicho? Minhas plantinhas nunca serão felizes só com torta de mamona! Quero “torta de sabores da Provence” para adubar o manjericão. Meu pé de laranja exige ser tratado com “torta de pato” e o pé de pimenta não vai mais sobreviver sem uma “torta de chiles mexicanos”. Isso é praticamente um oceano azul (verde?) de negócios! Há um potencial de consumo imenso, com milhões de pessoas nas grandes metrópoles que plantam salsinha na janela do apartamento.

E só para deixar registrado um pedido, não se esqueçam do meu pé de jabuticabeira. É uma fruta brasileira, talvez seu adubo preferido seja “torta de macaxeira”.

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Manual para escuta de conversas alheias em restaurantes (do básico ao avançado)

A escuta de conversas alheias em restaurantes é hoje uma atividade com resultados cientificamente comprovados para o bem estar de seus praticantes. Ela ajuda a manter o cérebro ativo, estimula a criatividade e permite aos indivíduos conectarem-se com seus semelhantes em redes muito mais poderosas e atualizadas do que aquelas encontradas na internet. Entretanto, a utilização crescente de aparelhos eletrônicos à mesa do restaurante tem diminuído o número de praticantes dessa atividade, bem como dificultado o acesso dos iniciantes às modalidades e regras da atividade. Para preencher esta lacuna, publicamos em primeira mão um pequeno manual que auxiliará a todos.

Das escolha do restaurante
É preciso encontrar um restaurante com o nível de ruído adequado. Se for muito barulhento, você não escutará a conversa da mesa ao lado. Se for muito silencioso, as pessoas tenderão a baixar a voz. A refeição do almoço em restaurantes mais finos é a mais adequada (mas não muito finos, porque pessoas finas falam baixinho).
Procure restaurantes da moda, em que as pessoas vão não para comer, mas para se mostrar. Não chegue muito cedo. O ideal é chegar quando o restaurante já está com a lotação completa, e o maitre é forçado, a contragosto, a colocar você em uma mesa bem central, na esperança que você desocupe a mesa logo e ele possa instalar ali dois comensais. A situação mais privilegiada é quando sua mesa está entre outras duas mesas ocupadas. Você terá a chance de escutar duas conversas ao mesmo tempo, alternando entre elas conforme o nível de interesse.

Da escolha dos pratos
Evite comidas crocantes. O ruído da mastigação pode atrapalhar a audição de momentos cruciais da conversa. Recomenda-se vivamente pratos como suflê e polenta, que exigem pouca mastigação. É absolutamente não recomendado pedir torradas, bruschettas e cenoura crua.
Nunca dispense o couvert. Isso melhorará o humor do maitre (é um item com alta rentabilidade para os restaurantes) e você poderá ficar mais tempo à mesa.
Evite bebida alcoólica, pois pode atrapalhar a concentração.

Das modalidades de escuta
Dependendo do seu humor e do benefício para a saúde desejado, é possível escolher dentre diversas modalidades de escuta.

1. Adivinhe o final da história
Nesta modalidade você ouve a conversa da mesa ao lado tentando adivinhar o fim da história. O namoro vai terminar mesmo, ou vai ser reatado? O chefe deu o aumento, ou não deu? Esta modalidade ajuda a praticar o desapego, já que nem sempre é possível sincronizar o seu almoço com a mesa ao lado para que você ouça a história completa.

2. Sessão de aconselhamento
Você tenta pensar nas alternativas de solução para o problema que está sendo relatado. Este tipo de modalidade é bastante avançada e exige muito auto-controle. Você tem que resistir à tentação de entrar na conversa para dar a sua solução para o problema. E também tem que resistir à tentação de dizer para quem está pedindo ajuda que o amigo ou amiga dela é um babaca e aquele conselho nunca vai dar certo.

3. Complete a frase
Esta é uma modalidade simples, em que você tenta responder (mentalmente) à pergunta que foi feita, antes que o interlocutor responda. É muito bom para praticar o diálogo e a flexibilidade mental. É altamente recomendada para advogados, políticos e jornalistas que precisam treinar a sua agilidade verbal. Exige bastante autocontrole: a resposta tem que ser dada mentalmente, e jamais verbalmente.

4. Aumente sua criatividade e previna doenças
Esta modalidade é avançada e não deve ser praticada por iniciantes. Para praticá-la, é necessário estar sentado entre duas mesas ocupadas e ouvir simultaneamente os diálogos. Você pode: a) alternar entre os dois diálogos; b) misturar as duas histórias; c) ouvir a pergunta feita em uma mesa e complementar com a resposta de outra mesa.
Para esta modalidade, a regra de nunca virar a cabeça mais de 5 graus para a esquerda ou direita é fundamental. Lembre-se: não é um jogo de tênis, você tem que praticar a escuta seletiva com cada uma de suas orelhas, ou acharão que você tem um tique nervoso.
Existe, ainda, uma variação que pode ser praticada por poliglotas, quando cada uma das mesas está falando em um idioma diferente. Lembre-se que, neste caso, você jamais pode interromper a conversar para pedir a explicação de uma palavra que você não conhece.
Os benefícios, evidentemente, são altos: além de estimular a criatividade, este tipo de escuta também é preventivo da doença de Alzheimer.

05. Há uma variação destas técnicas que nem todos os especialistas estão de acordo que seja um quinta modalidade. Trata-se da leitura labial. Este recurso costuma ser utilizado quando a mesa observada está uma distância grande. Trata-se entretanto de um recurso arriscado, porque exige um olhar fixo para a mesa, o que pode gerar constrangimento.

Das regras de escuta

1. Não vire a cabeça mais do que 5 graus para o lado da mesa que está sendo observada. Qualquer inclinação maior do que essa pode parecer que você está tentando estabelecer contato visual. Uma rápida olhada ao sentar-se permite que você visualize os personagens da conversa. Se você precisar confirmar fatos como “Ele é casado!!!” ou “Ela tem botox!!!”, pode aproveitar uma ida ao banheiro para uma rápida nova olhada. Para treinar a inclinação de cinco graus, nas primeiras vezes leve um livro e finja que está lendo. Esta inclinação é o máximo necessário para você ler as páginas da esquerda e da direita do livro.

2. Você também pode treinar levando um caderno de anotações, como se estivesse fazendo um trabalho . Neste caso, nunca interrompa a conversa da outra mesa para perguntar algo que não conseguiu anotar. E nunca esqueça o caderno aberto quando for ao banheiro.

3. Mantenha distanciamento emocional. Não chore. Não ria. E, sobretudo, não responda aos momentos cruciais da conversa com expressões do tipo “Nossa!” ou “Ah, eu já sabia!!!”. Enquanto ainda estiver treinando a escuta, pode utilizar um fone de ouvido como se estivesse ouvindo música. Caso você solte uma interjeição mais forte, as mesas pensarão que você está apenas cantando a canção que ouve.

4. Há controvérsias sobre a legitimidade ou não de se transmitir a conversa ouvida via Twitter ou Facebook. A correntes éticas mais conservadoras proibem qualquer transmissão. Liberais permitem a transmissão desde que não haja detalhes identificáveis do restaurante e dos ocupantes da mesa. Claro que se os ocupantes da mesa forem celebridades, a transmissão é permitida. Neste caso, trata-se de prestação de serviço (para as celebridades).

Para finalizar, é importante lembrar que a escuta de conversas alheias em restaurantes é uma arte que vem sendo solapada pelo uso de aparelhos eletrônicos. Convidamos você a desligar seu Ipod, seu celular e seu Ipad e participar desta atividade tão prazerosa e tão benéfica para a saúde mental. Você conhece outras modalidades e regras que não foram citadas aqui? Envie um comentário e ajude-nos a expandir este manual.

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Cozinhando para amigos

Quando a vida lhe der limões

Quando eu contei no Twitter que ia participar do programa da Ana Maria Braga, todos os amigos ficaram curiosos, e prometeram assistir ao programa na segunda-feira, dia 28.

Acontece que eu nunca disse que ia aparecer no Mais Você. Eu disse que ia participar. E no final das contas, a minha participação acabou sendo transmitida na sexta-feira passada.

Era uma vez um livro que eu ganhei que tinha receitas tradicionais do Brasil, e particularmente uma receita de doce de limão galego em que a polpa é retirada e a casca mantida intacta. Cobicei aquele doce.

Alguns anos depois, encontrei o doce de limão numa loja na entrada da cidade de Pirinópolis, em Goiás. Comprei um vidro, comemos devagarinho. Minha mãe também trouxe para mim um outro vidro de doce comprado em Goiânia, mas não era tão bom.

No começo desse ano, o Flavio Federico, um dos mais experientes chefs confeiteiros de São Paulo, comentou comigo que era difícil arrumar limões galegos verdes em São Paulo. Eu viajei para o interior e descobri, no sítio do vizinho da minha avó um pé carregado de limões verdes. Colhi umas três dúzias e trouxe para o Flavio.

No meu aniversário, o Flavio trouxe alguns vidros aqui para casa. E ainda tive a honra de ele bater um chantilly fresquinho com a batedeira que eu carinhosamente chamo de vintage (a empregada já perguntou se tudo que tem fita isolante pode ser chamado de vintage).

Quem assistiu o “Mais Você” na sexta-feira, no terceiro programa da série sobre chocolates, viu o Flavio entregando um vidro do doce para a Ana Maria. (por volta do minuto 10 nesse vídeo em que o Flavio explica como fazer trufas).

Eu nunca disse que ia aparecer, eu só disse que ia participar…. colhendo os limões. Moral da história: quando a vida lhe der limões, não faça limonada. Faça uma piada com os amigos. E entregue os limões para alguém competente.

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Tomates verdes tristes

A cena aconteceu no Pão de Açúcar da Alameda Santos, uma loja minúscula que já foi um simpático Sé Supermercado. Minha geladeira estava desabastecida, e eu morrendo de vontade de comer uma salada.

Fui a uma consulta médica ao lado do mercado, e entrei lá rapidamente para procurar uma alface. A gôndola de verduras da maioria dos supermercados é uma lástima. Alfaces murchas que te olham com aqueles olhinhos de filhote de cachorrinho perdido implorando um resgate. Tomates verdes tristes. Cenouras oxigenadas.

Mas eu não tinha tempo e queria jantar uma salada. Com esforço, encontrei um pé de alface em que ainda restava um pouco de dignidade e uns tomates que sorriam meio amarelos. Botei na cesta, aproveitei para pegar uns iogurtes e me dirigi ao caixa rápido, aquele apenas para dez itens. Alguns minutos na fila, e chega a vez da freguesa que estava à minha frente.
A caixa avisa:
– Senhora, este caixa é apenas para dez itens.
A cliente, com uma voz melosa e fininha:
– Ah… oh… mas eu estou há quinze minutos na fila.
– Senhora, este caixa é apenas para dez itens.
– Ah.. ohhh… mas eu venho aqui sempre…
Neste momento eu contei até dez (itens) para não entrar na conversa e dizer que se ela passava ali todo dia e não conseguia ler a placa então… bem, contei até dez.
– Senhora, lamento mas…
Novamente, com a voz melosa e fininha:
— Você pode me passar na frente na outra fila então?
A caixa olhou para as outras filas, todas com quatro ou cinco pessoas e, sem saber o que fazer, chamou a supervisora e relatou o dilema.
A supervisora olhou para a fila. Olhou para a cesta. Olhou para as outras filas. E autorizou a caixa a passar a compra da cliente que não sabia ler, ou contar.
Eu olhei para a alface. Olhei para os tomates. Olhei para a fila e decidi que maior do que a vontade era minha dignidade.
Larguei a cesta no caixa, disse para a supervisora que ela tinha desrespeitado a mim e a todos os clientes que estava na fila e sai.
Não mudei o mundo, não perdi nem ganhei nada. Só continuei com vontade de salada.
Mas tem que ser digna.

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Viajar e comer

Ostras, aspargos e outros produtos orgânicos

Aspargos do Chez Panisse
Aspargos com flores de mostarda do Chez Panisse
As ostras que comi em San Francisco tinham RG e CPF. A Beausoleil veio de Nebraska. A Emerald Acres veio de Washington. A Pearl Point veio de Oregon. A Kumamoto e a Drake’s Bay são da Califórnia. Ou seja, mais frescas do que isso, só se eu mergulhasse aos pés da Golden Gate Bridge para pescá-las por mim mesmo.

Grande parte do sucesso de um prato está na qualidade do ingrediente. Identificar e reconhecer o produtor é demonstrar respeito pelo seu trabalho. Isso juda a criar e educar o mercado e melhora toda a cadeia. O produtor, além de cuidar da qualidade do ingrediente, também é respeitoso com seus funcionários? Um ponto a mais para ele. O produto viajou por um meio de transporte com baixa emissão de carbono? Outro ponto.

Estamos chegando aqui já próximos da utopia? O problema é que durante tanto tempo fomos acostumados a não valorizar esse tipo de prática, que o que deveria ser utilizado como regra, virou exceção. Na buscar de valorizar esse tipo de produto e produtor, comer pode começar a ficar muito chato — imagine quanto tempo levaria para o Raphael Despirite explicar como foi produzido cada ingrediente do seu menu degustação? (Talvez seja uma boa ideia, já que o Marcel fica num flat. O comensal cai no sono e já sobe para o quarto).

Mas a melhor sátira sobre este tema está na revista Esquire de março, cujo texto traduzo livremente abaixo. Notas do tradutor entre colchetes.

Da fazenda à mesa
Como seu restaurante obtém a comida que coloca no seu prato (por A. J. Jacobs)

Na primavera, o aspargo é plantado em um campo a apenas 300 jardas estrada abaixo. Ele cresce sem interferência de pesticidas, fungicidas, herbicidas, radiação de telefone celular, barulhos de trânsito ou contato visual humano.

Nós esperamos.

No momento exato, o talo de aspargo é gentilmente colhido por um trabalhador da terra latinoamericano bem remunerado, mas somente após ter sido [o aspargo, não o trabalhador] submetido a hipnose Ericksoniana para minimizar a dor.

Segue-se um breve serviço funeral, incorporando elementos textuais judaicos, cristãos e shintoístas, reconhecendo que o aspargo está sacrificando sua vida para o nosso consumo.

O talo de aspargo é transportado diretamente e rapidamente para a cozinha por um corredor educado em uma das melhores universidades americanas (Ivy League), com os pés descalços e treinado pela tribo mexicana Tarahumara.

Ele é lavado [o aspargo, não o corredor] no orvalho matutino colhido nas tendas da brigada [sim, tendas de pele usada pelos nômades da Sibéria].
O chef executivo cozinha o aspargo por 30 segundos, segurando a dez pés de distância de uma fogueira feita com lascas de cipreste recicladas.

O aspargo é então servido para você, o comensal, por um garçom local, sem hormônios [o garçom, não o aspargo]. Em vez de pratos, nós usamos blocos endurecidos de lixo do quintal do restaurante, inspirados pela antiga cerimônia menarca da tribo local Chippewa.

Depois da refeição, é costume que os comensais caminhem até o campo de aspargos, agachem e fertilizem os vegetais com sua própria matéria orgânica, iniciando todo o belo processo novamente.