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A memória e as cidades (I)

Buenos Aires

Estávamos perdidos e com fome e mal-humorados. Passava das três da tarde quando encontramos uma pequena rotisseria. Eu me lembro claramente do proprietário apontando para o balcão e dizendo: “Tudo o que temos são estas codornas em escabeche”. Nunca me esqueci do sabor daquelas codornas frias, nadando em azeite e vinagre, servidas com pão rústico e uma taça de vinho.

Veneza

Caía a tarde e minha filha precisava jantar. Fugimos do menu turístico que assola todos os restaurantes e encontramos uma deliciosa sopa de feijão. A criança tomou metade da sopa e os adultos disputamos a colheradas o que sobrou. Mas a melhor lembrança que temos de Veneza não é dessa sopa de feijão, mas do limoncello que Peter Karady nos pagou na nossa lua-de-mel.

São Francisco

Cheguei sozinho, às 23:30, após atravessar a California de carro em oito horas, com uma única parada para ir ao banheiro, comprar uma Coca-Cola e um pacote de batatas fritas. O único local aberto próximo ao hotel era uma lanchonete do Subway. Mas o hotel era em frente ao Farmer’s Market, e no dia seguinte meu café da manhã foi um sanduíche de porchetta. Eu moraria naquele mercado.

Odense

O café da manhã mais estranho foi em Odense, na Dinamarca. Chegamos num domingo às onzes horas, feriado nacional, após as doze horas de voo até Amsterdã, conexão até Copenhagen e mais duas horas de trem. Exaustos, encontramos tudo fechado. O único estabelecimento aberto na cidade morta era uma sorveteria.

Paris

Na primeira vez,  fiquei hospedado em um Formule 1 muito distante do centro. Passei a manhã procurando uma flauta para meu irmão e um martelo de ortopedista para uma amiga. Virei uma esquina, meio sem saber onde estava, e me deparei com a Torre Eiffel. Respirei fundo. Paralisei. Me recordo de procurar um telefone público e ligar entusiasmado para minha irmã. Por mais que me esforce não consigo me recordar da primeira refeição.

***

Há dias não me saíam da cabeça as codornas de Buenos Aires. Comprei codornas congeladas – o pacote vem com quatro – e deixei marinando em meia garrafa de vinho branco, muitos dentes de alho, cenoura em rodelas grossas, manjericão, tomilho, louro, um pedaço de cebola e pimenta do reino.

No dia seguinte, sequei bem as aves, salguei e dourei na manteiga. Despejei o líquido da marinada na panela, acrescentei um gole de vinagre e cozinhei por uns vinte minutos. Deixei descansando na geladeira para concentrar o sabor por 24 horas.

Então comprei um bom pão, abri um vinho e quando provei as codornas me lembrei de todas essas cidades.

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A caixa mágica

Ao final do jantar, na hora do café, o garçom se aproxima com uma caixa de madeira escura e pesada, de uns 40×40 cm. Antes de abrir, avisa que é a “caixa mágica”. Suspense… Mostra o interior, onde se vêem apenas nibs de cacau. Ele fecha a caixa, chacoalha, chacoalha, abre novamente e – incrível!!! – de dentro sai a. ( ) um coelho b. ( ) uma arara azul c. (X) dois macarons de chocolate, materializados instantaneamente a partir dos nibs. É mágico!

Só que não é. E tampouco surpreendente: é constrangedor. Eu me sinto infantilizado, constrangido a sorrir, fazer uma carinha de surpresa e esboçar um débil “Oh!”, solidário com o cidadão que ganha a vida honestamente pagando esse mico. Não é o único mico da noite. Observo que a mesma piada ensaiada contendo um trocadilho com as palavras bruma (névoa) e broma (piada) é repetida de mesa em mesa, ao servir um prato envolto em fumaça de nitrogênio.

(bocejo)

Estou no Quique Dacosta, em Dénia, Espanha, um restaurante que leva três estrelas Michelin. A caixa mágica encerra um jantar de aproximadamente quarenta pratos. Do menu, guardo uma lembrança de que o chef maneja bem sabores cítricos. Que o maitre, Didier, é um dos mais hospitaleiros e espirituosos que já encontrei. O resto, é uma bruma.

Também pouco consigo lembrar do menu do El Celler de Can Roca, um dos restaurantes mais lindos em que já estive (o número 2 no ranking 50 Best em 2012). O serviço é impecável, embora eu prefira o tom mais informal do Quique Dacosta. A harmonização de vinhos é incrível. O apuro técnico no tratamento de texturas e temperaturas, impressionante. Aqui não há piadas nem magia. Mas há preocupação excessiva com o suporte. Após servir a entrada (duas azeitonas recheadas com anchova) em um bonsai de oliveira que é deixado sobre a mesa, a casa entrega cada item do menu em um suporte diferente. Me surpreende mesmo o salmonete (delicioso) que chega num prosaico prato branco de louça.

Desisto de ir ao ao Arzak, já que assistira à apresentação de Elena Arzak no Madrid Fusión e me parecera evidente o desequilíbrio entre o investimento na comida e o investimento no espetáculo.

Encontrei a magia que buscava no Asador Etxebarri (para referência, é o número 31 no 50 Best). Terminei a refeição pensando em voltar no dia seguinte. Lembrei de amigos que gostaria que estivessem ali comigo. Quinze dias depois, passando próximo a Atxondo, quase cancelei um compromisso para almoçar ali novamente. Não há atestado melhor de prazer gastronômico do que essa sensação. Além disso, lembro com precisão do sabor de cada prato servido. Mussarela de búfala feita no dia, manteiga de leite de cabra. Tartare de chorizo fresco, angulas, mini-polvos. Chuleta. Sem excessos, sem magia. Só fogo que transforma a madeira em brasa e técnica para saber o ponto perfeito de cada produto.

Não comi mal no Quique e no El Celler de Can Roca. Tenho certeza que um grupo de amigos pode divertir-se bastante em qualquer uma das casas. Só acho exagero quando este modelo passa a ser supervalorizado e, de referência, passa a ser uma camisa de força. Eu diria que há um excesso de circo (do soleil) nesse modelo. Eu, pessoalmente, prefiro um espetáculo com voz e violão (faca e fogão).

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A verdadeira comida russa

“Nevsk Prospekt” é tudo o que você precisa aprender em russo para não se perder em São Petersburgo. Não vai garantir boa comida, mas você não vai se perder. A cidade é linda, mas pouca gente, mesmo os mais jovens, fala inglês, e sequer há legendas no metrô da cidade. Em setembro de 2010 viajei para lá a trabalho, e meu hotel ficava a 4 estações de metrô da Nevsk Prospekt – a avenida de Champs-Elysées da cidade. Lá pelo terceiro dia já dá para se acostumar com o som e reconhecer o nome das estações de metrô. Mas, logo na chegada, a única maneira de chegar à Nevsk Prospekt é contando as paradas.

Assim que eu soube da viagem, fui pesquisar o que poderia comer por lá. Pela internet, encontrei poucas referências de um restaurante russo que me chamassem a atenção. A cidade é famosa pelo Palkin, uma reedição de um restaurante aristocrático originalmente aberto em 1785. Mas eu não queria comida da aristocracia russa (para isso tem Paris), queria comida do povo — ainda que fossem apenas batatas. Com a ascensão da Rússia como potência econômica, em algum lugar daquele cidade devia haver uma Mara Salles ou Ana Luiza Trajano reconstruindo receitas tradicionais.

A consulta ao Google não deu resultados. Alguns blogueiros europeus não souberam me indicar nada. Tentei encontrar alguma escola de gastronomia. Não achei. O máximo que encontrei foi um restaurante italiano que dava nome ao chef, e lá fomos jantar na primeira noite. Ao fim do mediano jantar de massas, eu procuro o chef, que não fala inglês e me indica falar com o sous-chef.

Eu capricho no melhor inglês com sotaque do leste europeu:
“Uér can I gêt ze rrreal rrrussian fooood? I want to eaaat russian food.”
E o sous-chef me responde: “Zér is no rrreal rrrussian food in Saint Petersburg. Want rrreal rrrussian food? Go to Moscow.”

No dia seguinte, tento amizade com o barista do hotel. A conversa se repete: “Uér can I gêt ze rrreal rrrussian food?”. Ele pensou, pensou, pensou e me indicou um restaurante que servia carnes. Pelo que pude observar em quatro dias, picanha, maminha e fraldinha fazem o maior sucesso por ali — zér is no churrascaria, mas deve ser um ótimo nicho de negócio.

Não faltam também pizzarias e casas de sushi. São Petersburgo fica no golfo da Finlândia, o que garante bons pescados. Na segunda noite, pegamos o metrô (conte 4 estações até Nevsk Prospekt) e entramos no primeiro restaurante mais ajeitado – lembrando que não há lei anti-fumo e que os russos fumam muito). O garçom chega com 2 cardápios na mão e pergunta:
“Italian or Japanese?”
Eu penso: “Que raios esse garçom acha que eu tenho cara de japonês?” e respondo: “English!”
Ao que o garçom retruca: “Italian food or japanese food, sir?”
Só então me dou conta que o restaurante serve pizza E sushi, e que o sushiman é russo, e o pizzaiolo é oriental.

Último dia, última chance. Na feira de souvenirs, encontramos a simpática Natalie, que afirma que o melhor restaurante russo ali do centro é o “Alsky Palsky” (ou pelo menos, “Alsky Palsky” é o que eu consegui entender). O problema é que, à noite, ao chegar no lugar indicado seguindo as instruções da Natalie, encontramos um restaurante em que a fumaça de cigarro parecia neblina da serra de Santos. A comida, disposta em bufê, tinha o mesmo aspecto horrivel da comida do hotel: algumas batatas remexidas, muito salmão defumado e pepinos em conserva e carnes de aspecto duvidoso. Era ali o “Alsky Palsky”, ou fomos parar no lugar errado? Nunca vou descobrir.

No dia seguinte nosso vôo era no fim da tarde e eu provoquei uma conversa entre o taxista e a concierge do hotel. Parece que a noção de “rrreal rrrussian food” é um pouco confusa para eles que confabulam, confabulam, e por fim chegam a um acordo onde me levar.

Eu até fiquei animado quando vi que o carro saia dos limites conhecidos da Neevsk Prospekt, pegava uma estradinha, algumas curvas e…. não!!! Parou em frente a um restaurante todo bonitinho, de onde saíam, naquele momento, dois ônibus de turistas chineses. Fomos recebidos por russos vestidos à caráter (ou seja, fantasiados com num filme de Hollywood) dançando dancinhas russas. Algo como trazer um turista para o RJ e levá-lo à uma churrascaria com show de mulatas. Comi uma salada russa. Minha filha comeu batatas fritas. Minha mulher comeu um estrogoff bem ruim. No aeroporto, compramos vodka e Ruffles sabor caviar. Isso sim, ze rrreal rrrussian foood.

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Russos e garfos

Lebre, L'Ami Jean, Paris

A comida sai voando e vai parar na cara (no decote, no colo, nas coxas) de um pobre coitado que come distraído. A cena dá nome, aliás, à categoria: humor pastelão. Você nem acha mais graça, de tantas vezes que já viu no cinema e na TV. E vou confessar: não tem mesmo graça nenhuma quando você é o personagem principal — o responsável pela comida que sai voando.

Semana passada jantei no L´Ami Jean, um restaurante pequeno em Paris que tem fãs que vão de Ruth Reichl à Roberta Sudbrack. Ou seja, lugar de respeito, que serve carnes de caça e um arroz doce (riz au au lait) inesquecível.

A cozinha é minúscula. O salão é pequeno, e as mesas são grudadas. Entenda grudado, neste caso: não há espaço entre as mesas. Para você se sentar, o garçom puxa a mesa, você entra, ele empurra a mesa de volta e você não sai mais.

Cheguei quinze minutos antes do horário da minha reserva, fiquei por ali esperando. Ao meu lado, outro cliente aguardava. Fino, vestia camisa e abotoadouras que anunciavam um belo bônus anual e um excelente plano de aposentadoria. Tomava um vinho, e lia um guia que eu não consegui notar se era grego ou russo.

Nossas mesas desocuparam ao mesmo tempo. Para sentar-se, a coreografia, O garçom puxa a mesa, o moço senta, o garçom empurra a mesa, o garçom puxa a outra mesa, eu sento, o garçom empurra a mesa. Mais grudado que uma poltrona da TAM.

O meu vizinho só falava inglês e acabei ajudando ele com a tradução do cardápio enquanto o garçom não chegava. “Codorna?” “Small chicken”. “Ganso?” “Big chicken”. Depois a conversa morreu e gente fingia que não estava um grudado no outro até que chegou a entrada, e descobrimos que tínhamos pedido exatamente o mesmo: poêlée de champigons. Prato principal e, de novo, a coincidência.

A essa altura, a conversa já rolava solta e ele me me contava da sua vinda ao Brasil ano passado. E na empolgação — yes!, Brazil, samba, favela, churrascaria — um movimento em falso com o garfo. Lièvre royal, como dá para ver na imagem, é daqueles pratos que não fotografam bem. A carne que fica uma semana marinando e vem à mesa se desfazendo em um molho denso e escuro, que deve resistir ao mais poderoso Vanish. Imagine o garfo virando. Fazendo um barulho na borda do prato (téimmmnnnnn….). Projetando como um míssil a porção de comida em direção à camisa, à manga, ao alvo.
Na sequência dos mais constragidos pedidos de desculpa (lembre-se, não dá para correr, o garçom tem que puxar a mesa para você sair), ele pede para eu moer sal na mancha — cena meiga acompanhada pelas mesas mais próximas.
Conversamos mais um pouco, ele me deu o cartão. Paguei a conta, e sumi. No metrô, abri o Google e digitei o nome. Basicamente eu tinha detonado a camisa do presidente do maior grupo de mídia russo. Levantei a gola do sobretudo, abaixei o chapéu, caminhei rápido para o hotel. Fiquei longe de russos e garfos pelo restante da viagem.

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Reflexão Viajar e comer

Das coisas simples da vida

Banca de legumes, Boulevard Raspail, Paris

Último dia em Paris. Acordo ansioso, faço listas de lugares ainda por visitar, consulto o mapa do metrô, Google Maps, conto e conometro os passos para aproveitar a cidade e não perder tempo na máquina impessoal de teletransporte que é qualquer aeroporto do mundo.

Saio logo cedo para buscar pão na Poilâne, a boulangerie famosa que hoje já tem 3 lojas em Paris e uma em Londres. Visitei ontem a loja do Marais, e embora tenha comido uma tartine deliciosa com queijo fresco e legumes, fiquei profundamente incomodado com a estética “nespresso” da loja, toda clean e simétrica e despojada. Clean, não: assética. Achei que em vez de guardanapo, trariam álcool gel para eu limpar as mãos. E os pães, embora ótimos, tinham aquela cara de manequim em vitrine de loja, que se tivessem a chance fugiriam dali.

Desço a rua Cherche Midi à procura da padaria, refazendo mentalmente a lista de lugares para visitar e, de repente, me deparo com uma feira livre na esquina do Boulevard Raspail. Queijos, pães, frutas, legumes, frios. Comida pronta: sopas, tortas, frangos. Muitos tipos de mel, sabonetes naturais. E todos os legumes e frutas arranjados/desarranjados sem nenhuma teoria de display de ponto de venda. Mas vivos! É inimitável – em São Paulo, alguns supermercados tentam, mas seus legumes ainda parecem os tristes manequins posando em vitrine.

Esqueci meus planos. Comprei uma galette de pomme de terres quentinha — batata, cebola, queijo ementhal. Sentei num café. Pedi um expresso. O casal ao meu lado esperava a netinha para passear. Puxamos conversa. Rimos. E a feira, logo ali na frente, me lembrava das coisas simples da vida: água, farinha e um domingo de sol.

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Ostras, aspargos e outros produtos orgânicos

Aspargos do Chez Panisse
Aspargos com flores de mostarda do Chez Panisse
As ostras que comi em San Francisco tinham RG e CPF. A Beausoleil veio de Nebraska. A Emerald Acres veio de Washington. A Pearl Point veio de Oregon. A Kumamoto e a Drake’s Bay são da Califórnia. Ou seja, mais frescas do que isso, só se eu mergulhasse aos pés da Golden Gate Bridge para pescá-las por mim mesmo.

Grande parte do sucesso de um prato está na qualidade do ingrediente. Identificar e reconhecer o produtor é demonstrar respeito pelo seu trabalho. Isso juda a criar e educar o mercado e melhora toda a cadeia. O produtor, além de cuidar da qualidade do ingrediente, também é respeitoso com seus funcionários? Um ponto a mais para ele. O produto viajou por um meio de transporte com baixa emissão de carbono? Outro ponto.

Estamos chegando aqui já próximos da utopia? O problema é que durante tanto tempo fomos acostumados a não valorizar esse tipo de prática, que o que deveria ser utilizado como regra, virou exceção. Na buscar de valorizar esse tipo de produto e produtor, comer pode começar a ficar muito chato — imagine quanto tempo levaria para o Raphael Despirite explicar como foi produzido cada ingrediente do seu menu degustação? (Talvez seja uma boa ideia, já que o Marcel fica num flat. O comensal cai no sono e já sobe para o quarto).

Mas a melhor sátira sobre este tema está na revista Esquire de março, cujo texto traduzo livremente abaixo. Notas do tradutor entre colchetes.

Da fazenda à mesa
Como seu restaurante obtém a comida que coloca no seu prato (por A. J. Jacobs)

Na primavera, o aspargo é plantado em um campo a apenas 300 jardas estrada abaixo. Ele cresce sem interferência de pesticidas, fungicidas, herbicidas, radiação de telefone celular, barulhos de trânsito ou contato visual humano.

Nós esperamos.

No momento exato, o talo de aspargo é gentilmente colhido por um trabalhador da terra latinoamericano bem remunerado, mas somente após ter sido [o aspargo, não o trabalhador] submetido a hipnose Ericksoniana para minimizar a dor.

Segue-se um breve serviço funeral, incorporando elementos textuais judaicos, cristãos e shintoístas, reconhecendo que o aspargo está sacrificando sua vida para o nosso consumo.

O talo de aspargo é transportado diretamente e rapidamente para a cozinha por um corredor educado em uma das melhores universidades americanas (Ivy League), com os pés descalços e treinado pela tribo mexicana Tarahumara.

Ele é lavado [o aspargo, não o corredor] no orvalho matutino colhido nas tendas da brigada [sim, tendas de pele usada pelos nômades da Sibéria].
O chef executivo cozinha o aspargo por 30 segundos, segurando a dez pés de distância de uma fogueira feita com lascas de cipreste recicladas.

O aspargo é então servido para você, o comensal, por um garçom local, sem hormônios [o garçom, não o aspargo]. Em vez de pratos, nós usamos blocos endurecidos de lixo do quintal do restaurante, inspirados pela antiga cerimônia menarca da tribo local Chippewa.

Depois da refeição, é costume que os comensais caminhem até o campo de aspargos, agachem e fertilizem os vegetais com sua própria matéria orgânica, iniciando todo o belo processo novamente.

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Fique nas mãos do chefe (mas diga que gosta de doces)

Dois dias em Madri, três em Sevilha, e depois cruzar o Alentejo, passando pela região fronteiriça onde se produz presunto e, na sequencia, se vêem imensos olivais. Com os olhos fartos de castelos e fortalezas, onde cacei dragões e princesas com a Lívia, chegamos finalmente em Sintra.

E aqui o @umlitrodeletras faz uma pausa na história para contar a experiência gastronômica mais memorável até agora – um almoço na Tasca da Esquina, do chef Vitor Sobral. A Tasca da Esquina é um projeto que moderniza a tasca portuguesa, com um ambiente mais moderno e a comida mais leve e inteligente do Vitor – já antecipando: os pratos são alguma coisa como um cruzamento entre Mara Salles e Raphael Despirite.

Chegamos na Tasca às 15:20, a apenas 10 minutos do fechamento, mas o chef responsável, Hugo Nascimento, aceitou nos servir o menu “Fique nas mãos do chefe”. De entrada, pães, azeitonas e um delicioso queijinho amanteigado de ovelha – para minha sorte a Sra. Litros não tolera queijos de ovelha, e a pequena Lívia dormia cansada de tantas escadas e passagens secretas do Castelo de São Jorge em Lisboa.

As duas entradas frias eram uma sopa fria de tomate com ameixas e uma mousse de camarão com laranja. A entrada quente, cogumelos gratinados com creme de berinjela e hortelã. O prato com peixe foi um pampo empanado, peixe típico dos Açores, suave como um linguado, servido sobre uma fatia de batata de doce e um creme de coentro (consultei furtivamente o guia, mas ele não registrava: em Portugal também é falta de modos lamber o prato?). Foi neste ponto que a Lívia acordou e comeu todo o peixe da mãe. Esperta: a combinação do peixe com a batata doce e o coentro é perfeita. O Hugo, atencioso, trouxe mais um peixe para nós. Para finalizar os pratos quentes, um naco macio de porco servido sobre purê de maçãs – um purê ácido, diferente dos adocicados que eu conhecia.

Naco de porco com purê de maças - Tasca da Esquina

Se uma sobremesa boa salva uma refeição ruim, o que dizer de uma sobremesa excelente depois de uma refeição memorável?  Não tenho certeza se a refeição é sempre encerrada com a degustação de sobremesas, ou se serviram para nós porque comentamos com o chef sobre nossa busca por bons doces. No que provamos, tinha: bolo de chocolate com creme de maracujá e cenoura, creme queimado, pudim de claras e pudim do Abade de Priscos com calda de abacaxi, hortelã e coco – o pudim é uma espécie de quindim, se for possível imaginar o quindim mais cremoso e saboroso que alguém já provou. A calda de abacaxi ajuda a equilibrar a doçura dos ovos, é e aqui que insisto em repetir os adjetivos inteligente  e moderno para o que vi e comi.

Sobremesas na Tasca da Esquina

A comida da tasca é portuguesa do começo ao fim, mas leve e com pequenas interferências inteligentes para equilibrar exageros históricos, como a calda de abacaxi para o pudim. A apresentação é bonita, o conjunto é bom e o preço é justo. O menu degustação de cinco etapas custa 26.50 euros. Nossa conta só ficou mais alta quando foram adicionados água, um espumante de entrada, cafés e outros extras. Mesmo assim, encerramos com 90 euros (sem vinho, apenas 2 taças de espumante).

…e então fomos comer pastel de Belém e visitar o túmulo do Camões.

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Três pianos e um cadáver

Fevereiro de 1998, lua-de-mel

Chegamos a Lugano um pouco tarde, cansados pelas estradas sinuosas que levam da Suíça à Itália. Mais cedo no mesmo dia tínhamos atolado na neve, numa estrada deserta. Momentos de pânico gelado.

Não me lembro do critério de escolha do restaurante para jantar. Se é que eu tinha algum critério naquela época. Foi provavelmente uma indicação do hotel.

Tampouco me lembro do que comemos. De entrada, tomei uma sopa de tartaruga. Que me fez ficar pensando até hoje que gosto tartaruga tem. Ou então que todo caldo Knorr é feito de tartaruga.

Mas o pianista era inesquecível, a começar pelas evidentes peruca e dentadura. E as canções de sempre, tocadas com os arranjos de sempre. Richard Clayderman de cantina, com arpejos intermináveis que transformam cada nota em outras dez, e tornam todas as canções iguais.

Ele também cantava. Eu pedi “Io che amo solo te”. Ele cantou a primeira estrofe e começou a repetir interminavelmente o refrão. Intensificou os arpejos para disfarçar que não lembrava da letra. A canção ficou irreconhecível como a tartaruga da sopa. E o pianista olhava para nós (lembrando da sua longínqua lua-de-mel?) e sorria continuamente um sorriso de teclado bem polido.

Abril de 2009, viagem a trabalho.

Na correria de uma viagem a trabalho, tento dar uma escapada para conhecer os restaurantes locais. Em Recife, me indicaram o Mingus, restaurante de comida contemporânea na Boa Viagem.

Entrei animado com o ambiente – meia luz agradável, grandes fotos de músicos de jazz nas paredes. O lugar onde você imaginaria comer algo bem arranjado, ouvindo Charlie Parker.

Mas no meio no salão tem um piano. E um pianista tocando as canções de sempre, com os arranjos de sempre e arpejos intermináveis que transformam cada nota em outras dez, e tornam todas as canções iguais.

Nada podia ser mais distante do ambientação do restaurante, que me serviu uma boa massa com lagostins com um tempero sutil de erva-doce.

Voltei ontem ao Mingus, e o mesmo pianista estava lá. Deprimente, num restaurante quase vazio, você jantar sozinho e ainda ouvir “My Way” do Frank Sinatra, naquele arranjo Ray Coniff. Enquanto isso, da parede, Tom Jobim, Charles Mingus e Charlie Parker ficam espiando o que você come.

De vez em quando

O L´Hotel é um dos poucos locais perto do meu escritório silencioso o suficiente para você bater um papo tranquilo no almoço. Menu executivo bem feito, mas caro. Deve ser o preço do silêncio.

Na escadaria que leva ao restaurante, entre um lance e outro, o hotel se orgulha de ter uma tapeçaria do século XVI. E no final do segundo lance, um piano que toca sozinho, com arpejos intermináveis que transformam cada nota em outras dez, e tornam todas as canções iguais. Isso mesmo, não tem pianista. Dá calafrios ver aquelas teclas se movendo, dedilhadas por um fantasma.

Quando eu tinha uns 12 anos, li um romance de John Dickson Carr chamado “Os Crimes do Unicórnio”. O morto ficava escondido atrás de uma tapeçaria, e num momento fatal do livro, despencava escada abaixo.

Sempre que passo por ali e piano está tocando o tema do Poderoso Chefão, subo as escadas hesitante. Tenho a certeza que ainda vou ver um cadáver despencar dali.