Ao final do jantar, na hora do café, o garçom se aproxima com uma caixa de madeira escura e pesada, de uns 40×40 cm. Antes de abrir, avisa que é a “caixa mágica”. Suspense… Mostra o interior, onde se vêem apenas nibs de cacau. Ele fecha a caixa, chacoalha, chacoalha, abre novamente e – incrível!!! – de dentro sai a. ( ) um coelho b. ( ) uma arara azul c. (X) dois macarons de chocolate, materializados instantaneamente a partir dos nibs. É mágico!
Só que não é. E tampouco surpreendente: é constrangedor. Eu me sinto infantilizado, constrangido a sorrir, fazer uma carinha de surpresa e esboçar um débil “Oh!”, solidário com o cidadão que ganha a vida honestamente pagando esse mico. Não é o único mico da noite. Observo que a mesma piada ensaiada contendo um trocadilho com as palavras bruma (névoa) e broma (piada) é repetida de mesa em mesa, ao servir um prato envolto em fumaça de nitrogênio.
(bocejo)
Estou no Quique Dacosta, em Dénia, Espanha, um restaurante que leva três estrelas Michelin. A caixa mágica encerra um jantar de aproximadamente quarenta pratos. Do menu, guardo uma lembrança de que o chef maneja bem sabores cítricos. Que o maitre, Didier, é um dos mais hospitaleiros e espirituosos que já encontrei. O resto, é uma bruma.
Também pouco consigo lembrar do menu do El Celler de Can Roca, um dos restaurantes mais lindos em que já estive (o número 2 no ranking 50 Best em 2012). O serviço é impecável, embora eu prefira o tom mais informal do Quique Dacosta. A harmonização de vinhos é incrível. O apuro técnico no tratamento de texturas e temperaturas, impressionante. Aqui não há piadas nem magia. Mas há preocupação excessiva com o suporte. Após servir a entrada (duas azeitonas recheadas com anchova) em um bonsai de oliveira que é deixado sobre a mesa, a casa entrega cada item do menu em um suporte diferente. Me surpreende mesmo o salmonete (delicioso) que chega num prosaico prato branco de louça.
Desisto de ir ao ao Arzak, já que assistira à apresentação de Elena Arzak no Madrid Fusión e me parecera evidente o desequilíbrio entre o investimento na comida e o investimento no espetáculo.
Encontrei a magia que buscava no Asador Etxebarri (para referência, é o número 31 no 50 Best). Terminei a refeição pensando em voltar no dia seguinte. Lembrei de amigos que gostaria que estivessem ali comigo. Quinze dias depois, passando próximo a Atxondo, quase cancelei um compromisso para almoçar ali novamente. Não há atestado melhor de prazer gastronômico do que essa sensação. Além disso, lembro com precisão do sabor de cada prato servido. Mussarela de búfala feita no dia, manteiga de leite de cabra. Tartare de chorizo fresco, angulas, mini-polvos. Chuleta. Sem excessos, sem magia. Só fogo que transforma a madeira em brasa e técnica para saber o ponto perfeito de cada produto.
Não comi mal no Quique e no El Celler de Can Roca. Tenho certeza que um grupo de amigos pode divertir-se bastante em qualquer uma das casas. Só acho exagero quando este modelo passa a ser supervalorizado e, de referência, passa a ser uma camisa de força. Eu diria que há um excesso de circo (do soleil) nesse modelo. Eu, pessoalmente, prefiro um espetáculo com voz e violão (faca e fogão).
Excelente o texto, como sempre, na forma e no espírito. 🙂
Eu nao tenho muita paciência para o excesso de formas e apresentações da nova culinária. Outro dia serviram-me foie gras com algodão doce dentro de uma caixa de Madeira. Recusei o prato – nao por causa da mistura equivocada, mas sim por questões higiênicas – e estéticas. A bem da verdade, ultimamente acho o excesso de pratos de uma degustação uma coisa cafona…mas o texto , para varar – impecável. Abs!!
Sandro,
por esses acasos da vida, fui apenas uma vez à Espanha, no distante 92, antes que o país virasse moda e que eu me interessasse de fato por comidas e bebidas. Ou seja, nunca comi em nenhum dos endereços que cita. Tenho curiosidade por eles, mas curiosidade que não me devora.
De lá para cá, só visitei diferentes paralelos e, da Espanha, soube por intermédio de conhecidos. Alguns, nada confiáveis. Outros, como você e certos amigos, ouvi notícias que não me estimulam a visitar essas casas repletas de artifícios e cujo empenho de infantilizar a clientela pode ser proporcional à analogia que fazem entre cozinha e laboratório.
Tudo isso para dizer que:
– seu texto, como de praxe, está ótimo;
– seu olhar, como de praxe, calibrado;
– sua sugestão do Asador Etxebarri reforça indicação semelhante de um amigo em comum; será meu destino prioritário quando, um dia, o avião parar antes da península vizinha;
– embora não tenha repertório para concordar ou discordar, tendo a concordar: fiquemos com voz & violão, faca & fogão;
– quando é que vamos almoçar ou jantar (sem pirotecnias, por supuesto)?
Abraços!
***blush***
Assim você me deixa corado. Obrigado.
A sugestão de lugar para almoço segue por email.
Sandro, excelente texto. Nuca fui aos dois primeiros, mas estive no Mugaritz e a sensação foi a mesma. No Arzak comi muitíssimo bem. Além disso, recebi um dos serviços mais atenciosos até hoje.
Quanto ao Etxebarri, como diz um amigo meu, seria o lugar a escolher para a última refeição da vida. Impossível explicar como é bom.
Abraço.
Adorei, Sandro, como sempre. Gosto das experiências lúdicas em restaurantes, não nego, mas para tudo há um limite de seriedade, de preço e de estômago! Valorizo muito suas dicas! Abraços,
Incrível texto. Retrata muito bem o QdC e Etxebarri. Como sempre, valeu pelas dicas. Abraços.
Sandro,
Como eu gostava de escrever assim.Genial.Posto isto, devo dizer que eu lembro- me do que comi no ” can roca”. Como se fosse hoje. E não recordo o mais pequeno brilho de fogo fátuo.Achei tudo muito voz e violão.
Um grande abraço
Miguel, tenho certeza que o El Celler de Can Roca não construiu sua reputação à toa. Apenas não funcionou para mim e, como fiz queestão de reiterar, é o modelo que me incomoda, menos que a comida. Obrigado pelo elogio ao texto (deve ter gente que não gostou, e esqueceu completamente — risos).