Fevereiro de 1998, lua-de-mel
Chegamos a Lugano um pouco tarde, cansados pelas estradas sinuosas que levam da Suíça à Itália. Mais cedo no mesmo dia tínhamos atolado na neve, numa estrada deserta. Momentos de pânico gelado.
Não me lembro do critério de escolha do restaurante para jantar. Se é que eu tinha algum critério naquela época. Foi provavelmente uma indicação do hotel.
Tampouco me lembro do que comemos. De entrada, tomei uma sopa de tartaruga. Que me fez ficar pensando até hoje que gosto tartaruga tem. Ou então que todo caldo Knorr é feito de tartaruga.
Mas o pianista era inesquecível, a começar pelas evidentes peruca e dentadura. E as canções de sempre, tocadas com os arranjos de sempre. Richard Clayderman de cantina, com arpejos intermináveis que transformam cada nota em outras dez, e tornam todas as canções iguais.
Ele também cantava. Eu pedi “Io che amo solo te”. Ele cantou a primeira estrofe e começou a repetir interminavelmente o refrão. Intensificou os arpejos para disfarçar que não lembrava da letra. A canção ficou irreconhecível como a tartaruga da sopa. E o pianista olhava para nós (lembrando da sua longínqua lua-de-mel?) e sorria continuamente um sorriso de teclado bem polido.
Abril de 2009, viagem a trabalho.
Na correria de uma viagem a trabalho, tento dar uma escapada para conhecer os restaurantes locais. Em Recife, me indicaram o Mingus, restaurante de comida contemporânea na Boa Viagem.
Entrei animado com o ambiente – meia luz agradável, grandes fotos de músicos de jazz nas paredes. O lugar onde você imaginaria comer algo bem arranjado, ouvindo Charlie Parker.
Mas no meio no salão tem um piano. E um pianista tocando as canções de sempre, com os arranjos de sempre e arpejos intermináveis que transformam cada nota em outras dez, e tornam todas as canções iguais.
Nada podia ser mais distante do ambientação do restaurante, que me serviu uma boa massa com lagostins com um tempero sutil de erva-doce.
Voltei ontem ao Mingus, e o mesmo pianista estava lá. Deprimente, num restaurante quase vazio, você jantar sozinho e ainda ouvir “My Way” do Frank Sinatra, naquele arranjo Ray Coniff. Enquanto isso, da parede, Tom Jobim, Charles Mingus e Charlie Parker ficam espiando o que você come.
De vez em quando
O L´Hotel é um dos poucos locais perto do meu escritório silencioso o suficiente para você bater um papo tranquilo no almoço. Menu executivo bem feito, mas caro. Deve ser o preço do silêncio.
Na escadaria que leva ao restaurante, entre um lance e outro, o hotel se orgulha de ter uma tapeçaria do século XVI. E no final do segundo lance, um piano que toca sozinho, com arpejos intermináveis que transformam cada nota em outras dez, e tornam todas as canções iguais. Isso mesmo, não tem pianista. Dá calafrios ver aquelas teclas se movendo, dedilhadas por um fantasma.
Quando eu tinha uns 12 anos, li um romance de John Dickson Carr chamado “Os Crimes do Unicórnio”. O morto ficava escondido atrás de uma tapeçaria, e num momento fatal do livro, despencava escada abaixo.
Sempre que passo por ali e piano está tocando o tema do Poderoso Chefão, subo as escadas hesitante. Tenho a certeza que ainda vou ver um cadáver despencar dali.
Sandro, existe realmente um pianista no restaurante do L´Hotel.
A história diz que ele é um imigrante suíço que por um problema com um turista brasileiro, teve que sair às pressas e mudar-se para Recife.
Inexplicavelmente, por volta de abril deste ano, o pobre músico foi novamente obrigado a sair às pressas, por ter mais uma vez encontrado seu desafeto andarilho.
A questão que ninguém sabe explicar, é que de vez em quando, ele entra em pânico, liga o piloto automático do piano e foge para os porões do complexo hoteleiro, assoviando o tema de Guerra nas Estrelas com arranjos de Ray Coniff e arpejos intermináveis.
que deprimente!
em outubro irei à recife e fugirei do mingus!
abraço!
Sandro, quanto tempo! Lembro-me bem do castelo que você me mostrou na revista, o qual seria o cenário para sua lua de mel. E tem mais: nunca me esquecerei de ter cantado My romance, no seu casamento… Adivinhou quem é?
Soy eu, Sandro, a Rê, a Lois…
Precisamos nos falar.
Beijão,
Parabéns pelo caminho de sucesso traçado em pixels e mais pixels.
Já li este post 3x dei risadas em cada uma. Hoje encontrei mais um pianista com seus interminaveis arpejos do Probre Juan do Cidade Jardim.