Ler mal e comer bem

Por que a tapioca tem que duelar com a tortilla? Por que o ratatouille tem que ser inimigo da caponata? Fico incomodado com as chamadas de duas matérias do caderno Paladar, do Estadão de hoje. Uma delas, resenha de um livro de Hamilton Mellão e Yann Corderón, ainda a ser publicado, outra com Neide Rigo e Lourdes Hernández dividindo o fogão para preparar tortillas e tapiocas.

Este tipo de chamada, que coloca comida num ringue,  e utiliza um vocabulário bélico, só serve para infantilizar o leitor, reproduzindo um maniqueísmo tolo, preso a um paradigma de século XIX, de afirmação de nacionalismos ufanistas, em que é necessário provar que o prato que vem de um lugar é melhor que outro. Quando muitas vezes a origem é comum e perdida no tempo.

Qual a finalidade de se preciso reduzir questões interessantes a falsas oposições? Não acredito que isso torne a matéria mais didática. Ou a palavra “guerra” serve para vender mais? Pode ser que seja o caminho editorial mais fácil. Mas aí seria preguiça.  Prefiro acreditar que um caderno que é referência no assunto não precise deste tipo de expediente.

Não há motivo para que italianos sejam melhores que franceses ou nordestinos melhores que holandeses. Eu prefiro viver num mundo, e sou feliz de viver em uma cidade, em que posso comer bom sushi num dia, e almoçar um caldo de mocotó espetacular num dia seguinte.

Sim, o mundo é feito de diferenças, mas as diferenças são complementares, e é isso que traz riqueza para tudo – na ciência, na arte e na gastronomia.

umlitrodeletras

8 Comments

  1. De fato, não tinha atentado para isto… Até elogiei estas matérias no Twitter! Falta de criatividade usar o mesmo artifício em duas matérias seguidas. No primeiro caso, no entanto, não sei se mérito do jornalista ou da Neide e da Lourdes, o desfecho esvaziou o gancho inicial. O pior ficou pro segundo caso. Eu não enxerguei como uma “guerra” quando li, mas que está lá o ‘contexto’, está sim.

  2. Como uma boa filha de um piauiense e uma mato grossense, sou uma boa prova de que a gastronomia e a culinária são aperfeiçoadas a partir da soma das diferenças! Minha escola foi mesmo a minha casa, vendo meus pais cozinharem!
    Ainda bem que há paladar para um bom caldo de mocotó e para o sushi, para uma simples chipa um simples cuscuz de arroz com manteiga acompanhado leite e café. Aliás…todo mundo será que sabe de onde vem e o que é chipa?

  3. Sinceramente não vi dessa forma os artigos. Especialmente o artigo do livro do Mellão me pareceu bem humorado, inclusive com fotos dos chefs visivelmente brincando. O contexto de guerra é utilizado como gancho com fundo cultural e histórico.
    Na verdade fiquei bem animada para comprar o livro…

    • Heloisa, tb fiquei interessado no livro, que parece legal. Quanto aos artigos, não é a primeira vez que noto essa dicotomização boba no jornal. E dessa vez, foram duas em apenas uma edição. Não entendo, sinceramente, porque ao ver duas coisas de origem distintas alguém tem que imediatamente colocá-las em oposição. E ao se colocar em oposição, sempre se possibilita a leitura de um é bom e o outro é mau. O mundo é mais complexo, e mais interessante, do que isso.

  4. Cresci comendo massa aos domingos, minha nonna italiana adorava sandália havaiana e feijão com pão, o Brás onde nasci já era nordestino em parte e o seu Raimundo, vizinho, trazia pra gente aqueles coquinhos em barbante e as farinhas de mandioca mais deliciosas direto do seu Ceará.
    Estou com vc, deveríamos fazer como o Joseph Campbell e sua teoria do monomito e quem sabe defendermos uma monogastronomia, afinal todas são feitas dos mesmos grãos, proteinas e vegetais…e da mesma necessidade criativa de preparar algo para comer e matar a fome.
    Abraço, saudades, passa no sabadão pra tomar um café com cupcake de baunilha, macadâmia e flores de lavanda..ou de mandioca com coco, que tal?
    Roberto

    • Tb com saudades dos nossos papos. Ando bem ocupado. Mas lavanda NÃO!!! Sabonete é sabonete, cupcake é cupcake.

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