O misterioso fenômeno do sorvete de rapadura à moda medieval

Com os colegas da pós, só estava rolando papo-cabeça: a memética e fim das receitas como bastião da cozinha ocidental. A influência das batatas na ascensão das classes proletárias. E por aí vai…
Até que este papo todo despertou o apetite, e finalmente começamos um papo mais apetitoso.
A Gracinda puxou a fila convidando todos para uma ida ao Mocotó — botecão que existe há 35 anos, mas tem sido incensado nos últimos tempos pelo trabalho do Rodrigo Oliveira, que deu um tapa nas receitas sertanejas tradicionais do pai e foi até eleito chef revelação pela Prazeres da Mesa.
O Mocotó fica na Vila Medeiros (região da Vila Maria, zona norte de São Paulo), muito longe do circuito Jardins-Itaim-Vila Olímpia. A distância deve contribuir para a alta freqüência e as filas no fim-de-semana. Na falta de praia, paulistano adora um programa off-circuit.
Obviamente a comida também é boa e barata. Carne de sol no ponto. Mandioca derretendo. Um escondidinho que parece um suflê do Cordon Bleu. E muita pimenta biquinho.
Experimentamos um pouco de cada prato, enquanto discutíamos um texto do Norbert Elias do processo civilizatório e dos modos à mesa. Neste texto, o sociólogo alemão descreve o processo de construção social dos modos à mesa, desde a época que todos metiam a colher no mesmo prato até os “sofisticados” hábito ocidentais contemporâneos, em que se leva a comida à boca com o garfo para se evitar o vexame dos dedos sujos. Nos primeiros tratados de etiqueta da era moderna, uma das recomendações era jamais colocar de volta a colher no  prato coletivo em que todos se serviam.
A nossa discussão prosseguia civilizada, até que decidimos pedir uma sobremesa de cada tipo para que todos pudesssem experimentar. Raspadinha de cajamanga, pudim de tapioca, cocada cremosa, mousse de chocolate com cachaça e sorvete de rapadura.  Bastou chegarem os doces para que a civilizada discussão se interrompesse, e todos nós regredíssemos ao glutão medieval que mora dentro de cada um. Quem se importava de dividir o prato com conhecidos há apenas três semanas? Metemos as colheres em tudo, raspamos o fundo  das taças e lambemos os pratos.
O sorvete de rapadura com calda de catuaba é um espetáculo. O pudim de tapioca é substancioso e tem uma boa calda. Só não gostei do musse de chocolate com cachaça — valeu a tentativa, mas com conhaque ainda é melhor. Para finalizar, um licor de cachaça com baunilha.
E o Norbert, se remexendo no túmulo, tentando entender o misterioso fenômeno dos pós-graduandos do século XXI que deitaram a perder cinco séculos de civilização à mera vista de uma sorvete de rapadura.

umlitrodeletras

0 Comments

  1. AHH!!! Que engraçado! Adorei esse texto e seu bolg Sandro, ontem estava no Kosushi imaginando como devia estar lá no Mocotó…
    Um grande abraço e até logo!

  2. Nossa! Que pena não ter ido!…Adoraria ter participado deste dito “retrocesso” sócio-cultural. Deve ter sido muito divertido. Não pude ir, fazer o que? Esperar o próximo encontro e participar!
    Gostei do blog. Sucesso!

    Abçs

  3. Ah, pra que essa de civilização? Melhor foi disputar o restinho da sobremesa com a colher do vizinho. E na nossa próxima vivência extra-curricular posso prever a gente limpando o dente com a faca e molhando o pão já mordido no prato comum.

    • Joana, eu morri de rir com sua proposta! Vamos ter que convidar a Wanessa para participar e registrar o fato histórico.

  4. Perder a compostura é especialmente normal no final da noite, com ataques a caixas de bombons Nestlé, como ontem à noite. Acho que não poderia ter nada mais mal-educado…

  5. Sandro, adoro suas descrições, mas vê se tira umas fotos também! Pode ser do celular, não consegui visualizar a comida, só a coreografia das colheres alternando pratos por todos os lados da mesa 🙂

  6. Sandro, faco essa pos de vcs a distancia, pelos comentarios e papos-cabeca q a Joana me proporciona pelo skype. Proporcione-nos mais constatacoes banais como esta! Acho fascinante teorizar e, logo depois, colocar a teoria de lado, como um guardanapo usado, e partir pra diversao.

  7. Sandro! Como foi lá no porque sim? Conseguiu se comunicar com os garçons? 🙂 e o lombo deles, o caldo….não são mais saborosos do que o asuka (o macarrão em si talvez não…mas o resto…)?

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