
Despenca o aguaceiro de fim de tarde de verão em São Paulo. Deixo o taxi esperando na esquina e entro
correndo na Zatar, em Perdizes. Peço quatro esfihas, jantar de quem está de férias e não quer cozinhar nem sujar louça.
“O senhor aguarda uns minutos, nós fazemos a esfiha na hora.”
Fico ali, ao lado do balcão, observando as mãos que montam as esfihas. Abre a massa, estica, coloca o recheio, fecha três pontas como um chapéu de Napoleão. Repete. Repete milhares de vezes, é a minha infância em volta da mesa de doze lugares coberta por trezentas esfihas que devem ser entregues às cinco da tarde. Preciso, urgente, tirar uma foto das mãos da minha mãe.
Mas hoje é dia de outras mãos. Que tinham uma letra forte e redonda. Que acariciavam madeira. Sabiam seu nome pela cor e pelo cheiro. Meu pai conheceu minha mãe quando foi à igreja que ela frequentava – e cujos bancos tinham sido feitos por ele. Casaram-se – ela fazia salgados, ele fazia bancos de igreja, casas, carroçarias da caminhão.
Em 2003, quando fui pela primeira vez a Buenos Aires, vi alguém fileteando uma placa. E súbito me lembrei do capricho delicado das mãos ásperas de meu pai fileteando carroçarias de caminhão. Era ali também a minha infância que voltava pintada naqueles traços curvos. Hoje é dia das mãos. Do pai que partiu há quinze anos, num dia sem chuva.
Comemora-se com esfihas salgadas, muito salgadas.
Categoria: Reflexão
Das coisas simples da vida

Último dia em Paris. Acordo ansioso, faço listas de lugares ainda por visitar, consulto o mapa do metrô, Google Maps, conto e conometro os passos para aproveitar a cidade e não perder tempo na máquina impessoal de teletransporte que é qualquer aeroporto do mundo.
Saio logo cedo para buscar pão na Poilâne, a boulangerie famosa que hoje já tem 3 lojas em Paris e uma em Londres. Visitei ontem a loja do Marais, e embora tenha comido uma tartine deliciosa com queijo fresco e legumes, fiquei profundamente incomodado com a estética “nespresso” da loja, toda clean e simétrica e despojada. Clean, não: assética. Achei que em vez de guardanapo, trariam álcool gel para eu limpar as mãos. E os pães, embora ótimos, tinham aquela cara de manequim em vitrine de loja, que se tivessem a chance fugiriam dali.
Desço a rua Cherche Midi à procura da padaria, refazendo mentalmente a lista de lugares para visitar e, de repente, me deparo com uma feira livre na esquina do Boulevard Raspail. Queijos, pães, frutas, legumes, frios. Comida pronta: sopas, tortas, frangos. Muitos tipos de mel, sabonetes naturais. E todos os legumes e frutas arranjados/desarranjados sem nenhuma teoria de display de ponto de venda. Mas vivos! É inimitável – em São Paulo, alguns supermercados tentam, mas seus legumes ainda parecem os tristes manequins posando em vitrine.
Esqueci meus planos. Comprei uma galette de pomme de terres quentinha — batata, cebola, queijo ementhal. Sentei num café. Pedi um expresso. O casal ao meu lado esperava a netinha para passear. Puxamos conversa. Rimos. E a feira, logo ali na frente, me lembrava das coisas simples da vida: água, farinha e um domingo de sol.
Greve dá fome

O pessoal do centro notou primeiro. Mas logo a notícia se espalhou pelas regiões da Paulista e da Berrini. À medida que avançava o horário do almoço, aumentava o número de pessoas na rua, em blocos, sem entender o que acontecia. Na rua Amauri, por volta das 13:00, a polícia interfere para desfazer a confusão: carros formam filas nervosas, bloqueiam a rua. Começa um buzinaço na Faria Lima. Executivos param SUVs nas calçadas, cobram informação dos valets, ligam imperiosos para as secretárias – “o restaurante está fechado, estou atrasado, faça alguma coisa!”. Nos Jardins, peruas insistem: “Nem uma saladinha?” Mas os valets também não tem informação, chegaram e foram surpreendidos pelas portas fechadas.
Na av. Santo Amaro, duas ou três dogueiros vendem todos os cachorros-quentes em quinze minutos. Quando não há mais pão nem salsicha, oferecem saquinhos de batata palha a preço extorsivo. Correm para o atacadista, mas outros dogueiros mais rápidos já desfalcaram as gôndolas. Os que perderam a disputa feroz pelos lanches voltam para a empresa e atacam as máquinas automáticas de venda, que pouco a pouco se esgotam — primeiros os sanduíches, depois os biscoitos, por fim as frutas desidratadas. Ninguém aparece à noite para reabastecê-las. Na Av. Paulista, a polícia faz vistas grossas para o chinês que prepara yakisoba. A fila é imensa, mesmo com as pessoas sabendo que não há para todos.
A prefeitura suspende o rodízio de carros, e algumas empresas liberam os funcionários (famintos) mais cedo. No metrô, nas ruas, nas rádios, todos comentam. Cozinheiros em greve. Sem aviso prévio, sem explicação, sem causa aparente, sem movimento organizado. O que se esperava, naturalmente, é que no dia seguinte tudo estivesse normalizado. Os executivos, por garantia, desmarcam os almoços. Alguns tentam contratar caterings, mas os telefones não atendem.
Quando amanhece, com os restaurantes ainda fechados, as empresas improvisam copas nas salas de reunião, com fornos de microonda e uma escala de uso por departamento pregada na porta. Os escritórios cheiram a lasanha quatro queijos, pizza de atum e hamburgueres semiprontos. O RH cria um comitê de contingência, e a primeira resolução é proibir pipoca — o som e o cheiro da pipoca, diz um especialista, atrapalha a produtividade. O sindicato rebate que a fome atrapalha muito mais.
Pouco a pouco, começam a desaparecer produtos congelados das prateleiras dos supermercados. A indústria não consegue repor com agilidade, e surge um mercado negro de escondidinhos congelados. As revistas e blogs especializados oferecem receitas práticas para serem feitas no trabalho: lasanha de cream cracker com requeijão, pudim de bolacha de maisena com leite condensado.
E sobre o grevistas, todo o tipo de boato. Uns falam em uma grande ação de marketing da indústria alimentícia. Ou que assinaram um manifesto secreto seguindo grandes chefs mundiais. Outros falam em vírus misterioso que se espalhou pelas cozinhas. Uma noite, surge um manifesto rabiscado nas portas de vidro de um restaurante. Sem assinatura, declara estar cansado da ditadura dos cardápios. Quer cozinhar o que bem entende. Se o cliente não quer comer rabada ou buchada ou língua bovina é seu problema. Que nunca mais vão servir bife bem passado. Que vão usar leite cru, tachos de cobre e colheres de madeira. Que quem quiser nutella que traga da sua casa. E claro, querem aumento de 30%, mais reposição da inflação e vale-refeição.
Aparentemente os cozinheiros se reúnem em festas noturnas, cozinham juntos pela madrugada e comem diretamente da panela, com muita pimenta do reino. Pela manhã, a polícia só encontra restos de panelas queimadas, fogueiras em brasas e um ou outro thermomix ainda em funcionamento.
As empresas fazem horários especiais para que todos possam preparar suas refeições em casa. No domingo as feiras-livres terminam mais cedo, com bancas vazias. Os feirantes explicam pacientemente: “Não há feijão pré-cozido. Tem que ficar de molho. Traga a panela de pressão que eu ensino a fechar.” “Não recomendo levar sardinha na marmita.” Crudivoristas aproveitam os espaços vazios das barracas de pastel para distribuir folhetos sobre os benefícios da sua dieta.
Pouco a pouco, um novo ritmo se instala na cidade grande. Pessoas redescobrem velhos livros de receita das avós. Depois redescobrem as avós. Pela manhã sente-se cheiro de pão assando nos apartamentos. A produtividade nos escritórios começa a voltar ao normal. Ninguém sente falta dos cozinheiros.
E novamente, o pessoal do centro é o primeiro a descobrir. “Os restaurantes estão abrindo!”. Passaram a noite fazendo faxina. Tudo limpo, mesas postas, até vasinho com flor em mesa de restaurante self service. Os clientes voltam ressabiados. Já não engolem qualquer coisa. Fazem perguntas o tempo todo. “De onde vem essa vagem?” (reconheceram a vagem!) “Como foi preparada esta carne?”. Os cozinheiros parecem mais bronzeados. Colocam a cabeça na boqueta e sorriem. Ninguém pergunta onde estiveram. Todos comem.
Os que leem os que comem
Os que comem fotografam, blogam, tuítam. Nunca a comida foi tão retratada, descrita, comentada e criticada. Com tanta informação online, eu imagino que um publisher de revista de gastronomia tenha, hoje, um baita desafio na mão. A revista Gula de julho, por exemplo, traz uma matéria extensa e bem fotografada da nova coleção de pratos da Roberta Sudbrack. Entretanto, a coleção lançada em maio já fora resenhada, alguns dias depois, pela Constance Escobar, no blog http://www.praquemquisermevisitar.com.br. Que espaço sobra, então, para as revistas?
Um argumento utilizado com frequência é o de que há blogueiros demais, e curiosos demais, sem a especialização nem o conhecimento necessário para falar do assunto. Existe, aliás, uma reação de canseira a tantos dedos e mouses apontados para filés fora do ponto, e uma sensação de que a crítica não especializada é que passou do ponto.
Acho que aqui há uma confusão de papéis. Nas redes sociais, muita gente acredita que está fazendo crítica, quando, na verdade, está fazendo controle de qualidade. Aliás, um consumidor tem o direito de reclamar se o produto que compra não está dentro de um padrão adequado de consumo. O que, aliás, sempre pode ser feito com elegância, afinal, a rede é social e não um faroeste.
Mas reclamar da qualidade não é crítica. O papel da crítica é outro — ela pode até apontar um desvio de execução de um prato a partir do cânone existente — mas seu interesse está mais em por quê aquilo acontece, e para qual tendência aponta. Na irritação legítima contra o exército de agentes de qualidade que se perfila nas redes sociais, os criticados também esquecem que a crítica tem seu espaço e ajuda a formular a concepção do estamos bebendo e comendo.
Voltando às revistas, se o caminho delas é aprofundamento, especialização e rigor — oras, então é importante que invistam nisso. E não escrevo este post para ficar apontando o dedo — embora, como consumidor, e com alguma noção do assunto, vez por outra eu me irrite com alguma deslize que escapou da edição e acabe ventilando isso pelo Twitter.
Voltando ao caso da Gula, a matéria acrescenta pouco ao que já se sabia da coleção do RS, embora, não custa repetir, é uma matéria bonita de se ver. Acho, aliás, que a Gula tem uma boa produção fotográfica e é daquelas revistas que dá vontade de comer. Em termos de matérias, pelo menos ao se comparar as edições de julho, há uma evidente aposta, similar à da revista Gosto, por matérias de caráter histórico. A Gula traz fondue e Frida Kahlo, a Gosto traz sanduíches e James Dean. Para o leitor que busca história, são o veículo perfeito.
A Prazeres da Mesa já é um instagram do cenário da restauração brasileira. Não há veículo melhor para saber quem está cozinhando o quê em que parte do Brasil e do mundo. À turma do controle de qualidade, eu sugeriria, em vez de caçar defeitos, o exercício intelectual de analisar quais os caminhos da gastronomia atual que se desenham nas 33 receitas. A própria revista pode também abrir mais espaço para esta análise.
Tenho dificuldade para definir a revista Menu, mas a matéria de capa, sobre carne de caça, é o melhor exemplo, neste mês de uma matéria que fez um bom exercício de trazer desde receita até questões de manejo e produção de animais “selvagens”. Também fala sobre sustentabilidade sem precisar citar o assunto nominalmente (um engano comum não restrito a revistas de gastronomia).
Não falei aqui da diVino Sabores, que não circula em julho, nem da Casa&Comida, para citar outras revistas que compro esporadicamente, e cujos projetos gráficos sempre me intrigam. Como eu disse no início, os publishers têm um baita desafio na mão, que não se resume apenas a alguns pontos que comentei aqui.
O sol nas bancas de revistas me enche de alegria e preguiça. Já faz tempo que o Caetano perguntou: quem lê tanta notícia? Os que comem, leem.
À minha horta, torta

Minha horta sobrevive. Já colhi umas três dúzias de laranja kinkan, aprendi a secar o manjericão no forno (amigos, aguardem ervinhas no aniversário, no Natal, no aniversário do ano que vem), e plantei uma capuchinha que nem murchou.
Certo de que aprendi a controlar a água (em que pese um pé de tomilho morto por afogamento), resolvi passar para a próxima fase e também alimentar as plantas. O que faz um homem moderno para alimentar sua família e seus gatos? Vai ao supermercado, claro, e compra comida comida em caixinhas.
Para gatos, há uma quantidade de produtos invejável: “Sabores do Mar”, “Beauty Fit”, “Sensações Marinhas”, “À Moda do Chef”, “Exigent” e “Light” (nem listei todos). Animal de estimação, hoje em dia, passa incrivelmente bem. O grau de sofisticação da comida acompanha as mais recentes tendências de alimentação humana. É possível encontrar rações com carnes exóticas, como canguru, antioxidantes e outros componentes funcionais e até comida vegetariana para cães (aprendi tudo isso com o Mukund Parthasarathy, um cientista consultor da indústria de alimentação para animais).
Mas então eu estava no supermercado e procurava comida para plantas. Tinha caixinhas de adubo para orquídeas e caixinhas de torta de mamona para árvores frutíferas, hortas e gramados. Peraí, só isso? Como as plantas modernas podem sobreviver?
Poxa vida, pessoal de marketing, vocês ainda não descobriram esse nicho? Minhas plantinhas nunca serão felizes só com torta de mamona! Quero “torta de sabores da Provence” para adubar o manjericão. Meu pé de laranja exige ser tratado com “torta de pato” e o pé de pimenta não vai mais sobreviver sem uma “torta de chiles mexicanos”. Isso é praticamente um oceano azul (verde?) de negócios! Há um potencial de consumo imenso, com milhões de pessoas nas grandes metrópoles que plantam salsinha na janela do apartamento.
E só para deixar registrado um pedido, não se esqueçam do meu pé de jabuticabeira. É uma fruta brasileira, talvez seu adubo preferido seja “torta de macaxeira”.
A escuta de conversas alheias em restaurantes é hoje uma atividade com resultados cientificamente comprovados para o bem estar de seus praticantes. Ela ajuda a manter o cérebro ativo, estimula a criatividade e permite aos indivíduos conectarem-se com seus semelhantes em redes muito mais poderosas e atualizadas do que aquelas encontradas na internet. Entretanto, a utilização crescente de aparelhos eletrônicos à mesa do restaurante tem diminuído o número de praticantes dessa atividade, bem como dificultado o acesso dos iniciantes às modalidades e regras da atividade. Para preencher esta lacuna, publicamos em primeira mão um pequeno manual que auxiliará a todos.
Das escolha do restaurante
É preciso encontrar um restaurante com o nível de ruído adequado. Se for muito barulhento, você não escutará a conversa da mesa ao lado. Se for muito silencioso, as pessoas tenderão a baixar a voz. A refeição do almoço em restaurantes mais finos é a mais adequada (mas não muito finos, porque pessoas finas falam baixinho).
Procure restaurantes da moda, em que as pessoas vão não para comer, mas para se mostrar. Não chegue muito cedo. O ideal é chegar quando o restaurante já está com a lotação completa, e o maitre é forçado, a contragosto, a colocar você em uma mesa bem central, na esperança que você desocupe a mesa logo e ele possa instalar ali dois comensais. A situação mais privilegiada é quando sua mesa está entre outras duas mesas ocupadas. Você terá a chance de escutar duas conversas ao mesmo tempo, alternando entre elas conforme o nível de interesse.
Da escolha dos pratos
Evite comidas crocantes. O ruído da mastigação pode atrapalhar a audição de momentos cruciais da conversa. Recomenda-se vivamente pratos como suflê e polenta, que exigem pouca mastigação. É absolutamente não recomendado pedir torradas, bruschettas e cenoura crua.
Nunca dispense o couvert. Isso melhorará o humor do maitre (é um item com alta rentabilidade para os restaurantes) e você poderá ficar mais tempo à mesa.
Evite bebida alcoólica, pois pode atrapalhar a concentração.
Das modalidades de escuta
Dependendo do seu humor e do benefício para a saúde desejado, é possível escolher dentre diversas modalidades de escuta.
1. Adivinhe o final da história
Nesta modalidade você ouve a conversa da mesa ao lado tentando adivinhar o fim da história. O namoro vai terminar mesmo, ou vai ser reatado? O chefe deu o aumento, ou não deu? Esta modalidade ajuda a praticar o desapego, já que nem sempre é possível sincronizar o seu almoço com a mesa ao lado para que você ouça a história completa.
2. Sessão de aconselhamento
Você tenta pensar nas alternativas de solução para o problema que está sendo relatado. Este tipo de modalidade é bastante avançada e exige muito auto-controle. Você tem que resistir à tentação de entrar na conversa para dar a sua solução para o problema. E também tem que resistir à tentação de dizer para quem está pedindo ajuda que o amigo ou amiga dela é um babaca e aquele conselho nunca vai dar certo.
3. Complete a frase
Esta é uma modalidade simples, em que você tenta responder (mentalmente) à pergunta que foi feita, antes que o interlocutor responda. É muito bom para praticar o diálogo e a flexibilidade mental. É altamente recomendada para advogados, políticos e jornalistas que precisam treinar a sua agilidade verbal. Exige bastante autocontrole: a resposta tem que ser dada mentalmente, e jamais verbalmente.
4. Aumente sua criatividade e previna doenças
Esta modalidade é avançada e não deve ser praticada por iniciantes. Para praticá-la, é necessário estar sentado entre duas mesas ocupadas e ouvir simultaneamente os diálogos. Você pode: a) alternar entre os dois diálogos; b) misturar as duas histórias; c) ouvir a pergunta feita em uma mesa e complementar com a resposta de outra mesa.
Para esta modalidade, a regra de nunca virar a cabeça mais de 5 graus para a esquerda ou direita é fundamental. Lembre-se: não é um jogo de tênis, você tem que praticar a escuta seletiva com cada uma de suas orelhas, ou acharão que você tem um tique nervoso.
Existe, ainda, uma variação que pode ser praticada por poliglotas, quando cada uma das mesas está falando em um idioma diferente. Lembre-se que, neste caso, você jamais pode interromper a conversar para pedir a explicação de uma palavra que você não conhece.
Os benefícios, evidentemente, são altos: além de estimular a criatividade, este tipo de escuta também é preventivo da doença de Alzheimer.
05. Há uma variação destas técnicas que nem todos os especialistas estão de acordo que seja um quinta modalidade. Trata-se da leitura labial. Este recurso costuma ser utilizado quando a mesa observada está uma distância grande. Trata-se entretanto de um recurso arriscado, porque exige um olhar fixo para a mesa, o que pode gerar constrangimento.
Das regras de escuta
1. Não vire a cabeça mais do que 5 graus para o lado da mesa que está sendo observada. Qualquer inclinação maior do que essa pode parecer que você está tentando estabelecer contato visual. Uma rápida olhada ao sentar-se permite que você visualize os personagens da conversa. Se você precisar confirmar fatos como “Ele é casado!!!” ou “Ela tem botox!!!”, pode aproveitar uma ida ao banheiro para uma rápida nova olhada. Para treinar a inclinação de cinco graus, nas primeiras vezes leve um livro e finja que está lendo. Esta inclinação é o máximo necessário para você ler as páginas da esquerda e da direita do livro.
2. Você também pode treinar levando um caderno de anotações, como se estivesse fazendo um trabalho . Neste caso, nunca interrompa a conversa da outra mesa para perguntar algo que não conseguiu anotar. E nunca esqueça o caderno aberto quando for ao banheiro.
3. Mantenha distanciamento emocional. Não chore. Não ria. E, sobretudo, não responda aos momentos cruciais da conversa com expressões do tipo “Nossa!” ou “Ah, eu já sabia!!!”. Enquanto ainda estiver treinando a escuta, pode utilizar um fone de ouvido como se estivesse ouvindo música. Caso você solte uma interjeição mais forte, as mesas pensarão que você está apenas cantando a canção que ouve.
4. Há controvérsias sobre a legitimidade ou não de se transmitir a conversa ouvida via Twitter ou Facebook. A correntes éticas mais conservadoras proibem qualquer transmissão. Liberais permitem a transmissão desde que não haja detalhes identificáveis do restaurante e dos ocupantes da mesa. Claro que se os ocupantes da mesa forem celebridades, a transmissão é permitida. Neste caso, trata-se de prestação de serviço (para as celebridades).
Para finalizar, é importante lembrar que a escuta de conversas alheias em restaurantes é uma arte que vem sendo solapada pelo uso de aparelhos eletrônicos. Convidamos você a desligar seu Ipod, seu celular e seu Ipad e participar desta atividade tão prazerosa e tão benéfica para a saúde mental. Você conhece outras modalidades e regras que não foram citadas aqui? Envie um comentário e ajude-nos a expandir este manual.
Santí, a delicadeza
Jantei no Santceloni, restaurante de Santí Santamaria em Madri há dois anos atrás. Espremido entre um vôo cansativo e uma reunião de trabalho, consegui uma reserva de última hora e ainda arrastei uma colega de trabalho (que quase nos fez perder a reserva porque precisava passar no hotel para trocar o sapato).
No menu degustação, porções delicadas de pescados e legumes sem maquiagem, disfarces ou piroctenias. Da refeição, me lembro ainda de um doce de abacaxi em calda servido na sobremesa. E da imensa variedade de queijos que chegam numa mesa, trazida por dois garçons. No Brasil, a concepção mais aproximada de seu trabalho é a Roberta Sudbrack, pelo trabalho de ourivesaria de seus pratos.
Santí buscava a essência em cada prato, e passou boa parte dos últimos anos polemizando com a cozinha tecnoemocional de Ferran Adriá. No seu livro “A Cozinha a Nu”, faz uma defesa apaixonada da cozinha artesanal, tradicional, baseada em produtos de qualidade. Lembro desse livro cada vez que me encontro perguntando porque me ponho, cansado, a sovar um pão ou fazer molho de tomates para minha família. Santí diz que cozinhar em casa, hoje em dia, é um ato revolucionário, porque toda a estrutura social está montada para que você não cozinhe. A revolução, às vezes, não tem fogo nem fumaça (nem espuma). É só trabalho duro mesmo.
Pra dizer que não falei das flores

Elas chegaram de repente, e trouxeram uma felicidade enorme para minha experiência agrícola de apartamento. Eu sei que que isso acontece com flores, já tinha até visto fotos nos livros. Mas tipo urbano que sou, esperava – sei lá – uma planilha de planejamento que previsse, um SMS ou DM que anunciasse o fato.
O pé de laranjas kinkan chegou em dezembro, meio tímido; deve ter estranhado o local e a companhia. Faltam-lhe outros pés de laranja para trocar confidências. O pé de romã ao seu lado é muito pequeno, quase criança, nem se lembra da viagem. O pé de jabuticaba se emudeceu por um tempo, se desfolhou com as chuvas, e só agora acena com novos brotos para o pezinho de laranja.
Eu tenho acordado às 6:00 da manhã para trazer água, conversar um pouco. Já tive algumas discussões com as ervas – essas têm um gênio mais forte, querem dominar o espaço. Dei um corte logo de cara e aprenderam a me respeitar (o pé de hortelã anda meio ressabiado, querendo saltar pra fora do vaso, desde que tivemos um briga porque ele não queria me deixar sair de casa).
Nesse horário, o sol está nascendo no horizonte, ou para situar melhor no plano da astrogeografia, por trás dos prédios da zona oeste de São Paulo. Sempre gostei desse momento da manhã, em que o dia ainda está cheio de possibilidades e não se sabe o que vai brotar. Logo mais, tudo é muito claro, a luz aplana todas as possibilidades e o dia se torna realidade.
Foi numa dessas manhãs que elas chegaram, e me trouxeram uma felicidade imensa. Urbano que sou, não sei direito sua língua. Fico por perto, e tento não atrapalhar seu trabalho. Nem tudo são flores na nossa amizade. Nessa manhã, vieram acompanhadas de um alguém maior. Espalhafatoso, só o zumbido já derrubava as pétalas mais frágeis no chão. Mal humorado, me perseguiu casa adentro, eu em carreira desabalada. As abelhinhas pequenas parecem não se importar com as fotos. Já o pequeno filho de helicóptero que me perseguiu não é amigo de paparazzi.
Ah, as flores. Esqueci de falar delas. Perfumadas. Delicadas. Deixam cair as pétalas que já revelam o milagre de uma laranja brotando. Quando se forem, sentirei saudade das abelhas, que andam se fartando por aqui. Quem virá depois para apreciar os frutos? As manhãs são tão cheias de possibilidades.
(Atenção: gostaria de avisar que pequenos sabiás, pardais e colibris são bem-vindos. Gaviões, falcões e filhotes de caça supersônico devem assinar um termo de cessão de direitos de imagem).
Exatamente um mês depois da entrega dos prêmios (e coincidentemente um dia após o anúncio da venda do restaurante), volto ao Pomodori para experimentar o meu prato favorito: a mezzaluna de leitoa com lentilhas. Pergunto ao garçom se o prato estava saindo bem após a premiação – sim, está vendendo bem, diz ele.
O prato tem o mesmo sabor, mas a massa está cozida demais, assim como o ravióli pedido por quem me acompanhava. Por esse mesmo motivo, ninguém votou no raviolini de coelho do Picchi. Quando eu o provei para o prêmio, parecia mais uma declinação de pontos de cocção: havia raviolinis quase crus, uns poucos no ponto e vários passados. A falta de regularidade é uma das maiores deficiências que o prêmio Paladar expõe. Imagino que seja também um dos maiores desafios de todo restaurante, desde a obtenção do ingrediente até a formação de mão de obra, seja para a cozinha ou para o salão.
Ao contrário de outros jurados, não tive nenhuma questão séria com atendimento que me incomodasse a ponto de virar uma história aqui (lembrando sempre que este prêmio pede a avaliação exclusivamente do prato, e não do serviço ou outros itens da casa).
Entretanto, é impossível deixar de observar como a maior parte do serviço é mecânica. Cortês, porém com um sorriso medido e distante. Como comensal, a minha busca é, em primeiro lugar, por boa comida. Mas hospitalidade é o grande trunfo de um restaurante. Encontrei hospitalidade no Izakaya Issa, onde todos os comensais pareciam estar na cozinha da casa de Dona Margarida. Encontrei hospitalidade no Gero, onde o maitre se desdobrou para propocionar um lugar confortável para a minha filha de cinco anos que dormia, com a casa completamente cheia num sábado à noite. A mesma situação gerou tensão no Jun Sakamoto, embora houvesse lugares vazios no balcão num feriado com a cidade deserta. Encontrei interesse pelo comensal no Tre Bicchieri, onde o garçom cordial e atento notou minha dúvida ao consultar as sobremesas, e me ofereceu uma sobremesa fora de cardápio, preocupando-se depois genuinamente em perguntar se eu havia gostado.
Gostar de um prato é um julgamento que mesmo baseado em alguns cânones (o ponto, o equilíbrio, etc) tem um componente inseparável de subjetividade. E depois de comer, comparar, pensar e sopesar, ainda existe um desafio e responsabilidade de encontrar a palavra certa para transmitir ao leitor o que ele irá encontrar em sua refeição.
A boa comida é auto-evidente e se descreve sozinha no prato e no paladar. Não deixa dúvida da sua força de expressão. A experiência de comer e pensar é a de traduzir para o comensal que busca a crítica gastronômica o que o prato queria dizer. Mas esta tradução, como todas, é sempre aproximada. Podem-se gastar litros de letras, mas no final da refeição, só mesmo o próprio comensal decide o valor do seu diálogo. A língua é mais ou menos conhecida, mas cada conversa depende de quem está a volta e em cima da mesa.
Na categoria Pratos Vegetarianos, as duas melhores escolhas eram o Arroz Negro Tostado com Legumes Verdes do D.O.M e o Cuscuz de Mini-Verduras do Maní. A Panelinha de Legumes da Brasserie do Jacquin foi o prato mais intragável de todo o prêmio – a escolha da sua foto para a chamada de capa do Estadão no dia da publicação dos resultados é, para mim, um mistério editorial. Afinal, nem era bonito como estava ali. Fiquei com o Cuscuz, e guardei meu entusiasmo para a categoria Carne Suína.
O javali do D.O.M era impecável, mas não atendia à minha regra essencial para selecionar um prato: voltaria feliz para comer o mesmo prato no dia seguinte. Neste momento, o Lobo Mau se deparou logo com o cochinillo do Arola. E estava convicto de que esse prato seria o vencedor, até me ver frente a frente com a bisteca do Le Jazz. No fim das contas, empate. Não havia nenhum elemento nos pratos que pudesse fazer a minha escolha pender para um ou para outro. Minha decisão? Um voto “ideológico”, que o Heitor e Cícero não entenderam, mas o Prático aprovou: entre um prato pequeno que custa R$ 54,00 e uma refeição farta por R$ 34,00, achei que o leitor do jornal merecia saber que em São Paulo ainda é possível comer bem por um preço razoável. Convicções derrubadas por um sopro.
No mesmo Le Jazz, a raposa, que já conhecia o Ovo Mollet da casa, contava com uma boa possibilidade de vitória. Pena. O ovo chegou com a gema cozida, e ovo mollet com gema cozida não é ovo mollet. É outra coisa. Outros jurados apontaram para outros pequenos problemas da casa, o que parece mostrar que ali há mesmo uma questão séria de regularidade.
Mas, de volta à entrada, os destaque da categoria eram as Vieiras Frescas do Alaska do Jun Sakamoto e o Ovo Pochê do Emiliano. Mais um empate. Do ponto de vista gastrônomico, dois pratos perfeitos, que correspondiam ao meu critério principal: voltaria para comer. E novamente, recorri a um desempate por outro critério. Pense bem: ou as vieiras são frescas, ou são do Alaska. Nem o Google Maps consegue calcular a distância entre o Alaska e o Brasil. Num momento em que a tendência é valorizar ingredientes locais, mais frescos e com uma pegada ecológica menos crítica, o Ovo Pochê me pareceu a escolha mais correta. Não foi o único lugar em que encontrei ingredientes “frescos” que fizeram uma longa viagem. No Arturito, uma sobremesa do cardápio continha “frutas vermelhas frescas da Patagônia”. Ora, novamente, ou as frutas são frescas, ou são da Patagônia.
O Arturito ofereceu a melhor refeição de todos os restaurantes visitados. Fico feliz que a casa, aparentemente, tenha vencido o dilema ou o-serviço-é-bom ou a-comida-é-boa, que tinha deixado um gosto amargo na minha última visita.
Mas para falar de serviço e outros itens, volto logo mais na parte 3 da maratona.