Orfã de faca

Quando chegaram os órfãos, tia Emília era nova, tinha três filhos, algumas panelas, uma faca e um facão. “Alguém tem que buscar os miúdos”, disse o tio, carta de bordas pretas nas mãos, que era como se anunciavam mortes nos anos quarentas. Morreu o pai de malária, morreu a mãe de paixão, tudo isso em seis semanas, e ainda a carta que levara um mês entre Minas e São Paulo, e os miúdos que já não estavam mais na Fazenda da Vaca Morta e andavam pelas casas dos padrinhos.

Os orfãos tinham treze, onze e nove anos (essa, de nove, a minha mãe). Chegaram com as coxas esfoladas, dois dias de cavalo e trem e pensões para pernoitar, trocar as roupas de luto pretas e roxas e ganhar um vestido novo azul estampado.

O menino logo se soltou no mundo, tocando gado e montando em cavalos bravos. As meninas ficaram. Ajudavam na lida, atravessavam o lixão para buscar lenha para a cozinha. A menor, um dia, encontrou uma laranja. Abaixou-se, disfarçou, escondeu a laranja das outras, equilibrou o feixe de lenha na cabeça e continou o caminho. Uma laranja firme, casca brilhante. Alguém jogou fora uma laranja. Não teria jogado se tivesse seis crianças em casa, se tivesse que contar o sal e açúcar até o marido voltar das viagens tocando gado, não teria passado despercebida essa laranja.

A pequena entregou a lenha, disfarçou perto do fogão, bebeu água sem vontade na caneca de barro e pegou a faca de cozinha. Foi para o banheiro, casinha no fundo do quintal com privada de buraco. Trancou-se. A laranja dourada brilhava. Começou a descascar afoita, a faca feria a casca da laranja e o sumo ardia, antecipava a laranja azeda e madura.

Há quem nunca tenha visto ou usado uma privada de buraco ou que não saiba porque se usa expressão “ir para a casinha” quando se quer dizer ir ao banheiro. A privada de buraco não é uma privada. É um buraco fundo ligado a uma fossa séptica, cercado por quatro paredes de madeira, a casinha, uma porta com tramela, algum malcheiro que exala.

De repente, a faca, desajeitada, caiu no buraco, com a laranja por descascar. A menina ficou ali, orfã da faca, a laranja imediatamente perdeu o brilho. Desacorçoada, a menina jogou também e laranja e foi brincar as bonecas de espiga de milho.

Por volta das cinco da tarde, Tia Emília procurou a faca para fazer o jantar. “Onde está minha faca, quem pegou minha faca, quem viu minha faca?”. O jantar atrasado porque se procurava a faca e ninguém dava conta dela. O tio estava viajando, só casa em casa de mulher relaxada e sem homem que se atrasa a horário do jantar. Último recurso, tia Emília pegou o facão de cortar mato e preparou a comida.

As meninas cresceram.

***

Quando eu tinha dez anos, pegava a bicicleta e ia na casa da tia Emília assistir à Sessão da Tarde. Por volta das cinco, ela começava a preparar o jantar, quantidade suficiente para que tivesse marmita dos filhos no dia seguinte. Chegavam às seis e meia, sete horas, e a comida estava pronta no fogão. Arroz e feijão feitos na banha de porco, ovo frito com a casquinha queimada por fora – ai, que frito ovos com essa casquinha para lembrar da tia, mas nunca têm o mesmo gosto.

***

Hoje, depois do enterro, sentamos à volta da mesa enquanto alguém preparava o almoço. No centro da mesa uma bacia de laranjas, e uma bacia de laranjas é o que define para nós um almoço em família. Triste ou alegre, refeição de casamento ou funeral, há que se ter uma bacia de laranjas, a mãe carrega sempre uma faca na bolsa, ela que agora anda de avião e não esfola mais as coxas para ir a Minas, descasca laranjas e conta histórias sobre a tia Emília.

***

Tia Emília tinha 95 anos e, dizem os que estavam ao seu lado ontem, faleceu como um passarinho. Nenhum ai, porque todos seus ais já estavam enterrados há muito tempo. Apenas um suspiro e o silêncio das asas. Mas os que dizem que ela morreu como um passarinho esquecem que há modalidades violentas para a morte de um passarinho: estilingue, pedra, gavião, serpente. Ou modalidades banais: o passarinho morre, tomba e não voa mais e isso é só a pequena morte de um passarinho. Tia Emília, não: ela morreu e voou para sua árvore eterna.

umlitrodeletras

18 Comments

  1. Sandro, que linda homenagem. Tenho certeza que tia Emília, de onde estiver, ficou feliz com tanto carinho em forma de letras e lembranças. É muito bom ter lembranças assim. Seu texto me fez chorar. Você escreve muitíssimo bem. Um abração,

  2. Primo Sandro, eu sei que foi tudo isso, mas a maior felicidade foi meu velho pai de muletas ir a cidade autorizar o sepultamento na mesma catatumba que qdquiriu a 30 anos onde seu irmão e esposo tio Zequinha foi sepultado.
    Hoje qdo chegamos no mt ele me ligou radiante de felicidades que a missão dele estava cumprida, pois ela foi sua segunda mãe.Fazer o bem e não olhar a quem. bjos prima BETE.

  3. Primo,lindo texto, linda história de vida que a vó Emília nos deixou, você e a Bete me emocionaram…

  4. Muita leveza na forma de ver, viver e registrar a vida! Linda homenagem à uma pessoa, que marcou a vida de tantas outras pessoas amadas. Dá para sentir. Beijo

  5. Lindo texto, Sandro! É antes de tudo uma homenagem à tia que tanto marcou a vida de tantos, mas também é um belo retrato do que há de inestimável na família, em cada família. Um grande abraço, Anderson

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