Russos e garfos

Lebre, L'Ami Jean, Paris


A comida sai voando e vai parar na cara (no decote, no colo, nas coxas) de um pobre coitado que come distraído. A cena dá nome, aliás, à categoria: humor pastelão. Você nem acha mais graça, de tantas vezes que já viu no cinema e na TV. E vou confessar: não tem mesmo graça nenhuma quando você é o personagem principal — o responsável pela comida que sai voando.

Semana passada jantei no L´Ami Jean, um restaurante pequeno em Paris que tem fãs que vão de Ruth Reichl à Roberta Sudbrack. Ou seja, lugar de respeito, que serve carnes de caça e um arroz doce (riz au au lait) inesquecível.

A cozinha é minúscula. O salão é pequeno, e as mesas são grudadas. Entenda grudado, neste caso: não há espaço entre as mesas. Para você se sentar, o garçom puxa a mesa, você entra, ele empurra a mesa de volta e você não sai mais.

Cheguei quinze minutos antes do horário da minha reserva, fiquei por ali esperando. Ao meu lado, outro cliente aguardava. Fino, vestia camisa e abotoadouras que anunciavam um belo bônus anual e um excelente plano de aposentadoria. Tomava um vinho, e lia um guia que eu não consegui notar se era grego ou russo.

Nossas mesas desocuparam ao mesmo tempo. Para sentar-se, a coreografia, O garçom puxa a mesa, o moço senta, o garçom empurra a mesa, o garçom puxa a outra mesa, eu sento, o garçom empurra a mesa. Mais grudado que uma poltrona da TAM.

O meu vizinho só falava inglês e acabei ajudando ele com a tradução do cardápio enquanto o garçom não chegava. “Codorna?” “Small chicken”. “Ganso?” “Big chicken”. Depois a conversa morreu e gente fingia que não estava um grudado no outro até que chegou a entrada, e descobrimos que tínhamos pedido exatamente o mesmo: poêlée de champigons. Prato principal e, de novo, a coincidência.

A essa altura, a conversa já rolava solta e ele me me contava da sua vinda ao Brasil ano passado. E na empolgação — yes!, Brazil, samba, favela, churrascaria — um movimento em falso com o garfo. Lièvre royal, como dá para ver na imagem, é daqueles pratos que não fotografam bem. A carne que fica uma semana marinando e vem à mesa se desfazendo em um molho denso e escuro, que deve resistir ao mais poderoso Vanish. Imagine o garfo virando. Fazendo um barulho na borda do prato (téimmmnnnnn….). Projetando como um míssil a porção de comida em direção à camisa, à manga, ao alvo.
Na sequência dos mais constragidos pedidos de desculpa (lembre-se, não dá para correr, o garçom tem que puxar a mesa para você sair), ele pede para eu moer sal na mancha — cena meiga acompanhada pelas mesas mais próximas.
Conversamos mais um pouco, ele me deu o cartão. Paguei a conta, e sumi. No metrô, abri o Google e digitei o nome. Basicamente eu tinha detonado a camisa do presidente do maior grupo de mídia russo. Levantei a gola do sobretudo, abaixei o chapéu, caminhei rápido para o hotel. Fiquei longe de russos e garfos pelo restante da viagem.

umlitrodeletras

5 Comments

  1. Antes disso, só relembrando a a cena da nossa irmã há tempos atrás servindo uma visita e conseguindo colocar o ovo bem dentro do bolso da camisa……………….
    Que não seja hereditário…………..kkkkkkk

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