Ensino à distância

O automóvel cruza as estradas do Brasil central.
Gostaria de dizer “o automóvel cruza velozmente as estradas do Brasil central” – uma abertura muito mais cinematográfica, mas os buracos e ondulações da estrada não permitem esta velocidade.

O carro cruza as estradas como pode, e às cinco da tarde do sábado de outono, pelo menos o céu é amplo e a luz do sol doura intensamente os campos de soja à espera de um Van Gogh para retratá-los.
Dentro do carro, os quatro professores tentam definir o dourado: parece uma pamonha quentinha? A crosta reluzente de uma empadinha de frango? A superfície lisa e cremosa de um curau?
O motorista relata as incríveis variações de pamonha que podem ser encontradas em Brasília: pamonha com lingüiça e queijo. Pamonha com lombinho de porco e muita cebolinha. Com pimenta. Sem pimenta.

O sol desce um pouco mais e sua luz fica mais escura. Cor de pão quentinho saindo do forno. Ou cor de um nugget de frango. A fome também cria miragens, e os pés de milhos esguios e ressecados contra o sol parecem um imenso arco do McDonalds.

O aeroporto de Brasília está fechado, e os quatro professores ansiosos para voltar para casa decidiram alugar um carro, contratar um motorista e rodar 1.100 km até São Paulo. Saíram sem almoço, apenas com o tempo de pegar algumas garrafas d’água e meia dúzia de pães de queijo murchos que sobraram do lanche.
Partiram às duas da tarde, e logo começaram a suceder-se as placas na estrada. Pamonhas. Pão com linguiça a 500 mts. Pão com lingüiça caseira a 300 mts. Pão caseiro com lingüiça caseira a 200 mts. Amplos toilets, os melhores da região. Tanto anúncio de toilet lança uma dúvida sobre a qualidade da vigilância sanitária da região.

A primeira parada é em Catalão de Goiás, num posto à beira da estrada. O amigo de todo viajante é um churrasquinho – pão francês, filé e queijo, com o pedido adicional de um tomate. Mas há também quem não resista a um pastel frio. Biscoitos de polvilho, Eskibon de sobremesa, mais água e balas de hortelã – doze horas sem banho, ao menos o hálito vai ficar fresco.

Na segunda parada, em Minas Gerais, tentam comprar queijo, para levar um “agradim” às famílias. As casas especializadas já fecharam (como dormem cedo estes mineiros!). O jeito é comprar mesmo um queijo-de-minas no Pão de Açúcar 24 horas. Ninguém vai ficar sabendo da verdade.

Já no estado de São Paulo, uma parada rápida. Agora é a vez do carro se abastecer. Ninguém desce. O trato é tomar um lanche rápido mais tarde, no Frango Assado da Bandeirantes

Às 21:00, quem ainda está acordado volta a ver miragens: lagos viram suculentas canjas de galinha. Árvores iluminadas pela lua cheia parecem palitos de batata frita.

Já de madrugada, os viajantes param no Frango Assado. Café com leite, pão sovado na chapa. O pão sovado merece detalhes: é uma fatia grossa, com pouca manteiga, passada na chapa o suficiente para aquecer e ficar com as bordas levemente escuras. Lembra um colchão quentinho e macio. Ou isso já era outra miragem?

Chegam em São Paulo às 3:00 da madrugada. Impossível negar que foi divertido. Viveram, na prática, o que se chama por aí de ensino à distância.

umlitrodeletras

0 Comments

  1. Está perdoado… só porque resistiu à pamonha com lingüiça….
    Mas quando for aí quero um almoço na sua casa…
    Bia

  2. Rsrsrsss… Nestas horas, tem que adotar a máxima do ‘relax and enjoy’ mesmo 🙂 Incrível, achei alguém que como eu tem o que eu chamo de ‘memória gastronômica’ – todas as minhas viagens, grandes acontecimentos da vida, etc. são sempre ‘puxados’ pela memória gastronômica. Eu me lembro de casamentos, enchentes, apagões (!), lugares legais onde fui – pelas comidas e bebidas que estavam em volta. Adorei seu blog. Um abraço,

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