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Um Litro de Letras na Cozinha

Episódio 3: Oi, mãe

Minha mãe, que está em Belo Horizonte visitando a bisneta, me liga:

“Oi, filho, tudo bem?”

“Oi, mãe!”

“Você vai abrir um restaurante?”

“Oi, mãe?”

“Me mostraram umas fotos suas no Facebook. Você não tinha me contado nada.”

“Mãe, é que eu estou com tempo livre e achei que podia passar uns dias na cozinha esfriando a cabeça.”

“Oi, filho?”

“É, mãe. Esfriar a cabeça, aprender coisas novas, mudar de ares.”

“Mas está tudo bem com você?”

“Está tudo ótimo, mãe. Sabe que quando estou picando salsinha ou cortando cebola, sempre lembro da senhora.”

“É, filho?”

“É, mãe. Não era nada fácil fazer aquele mundo de empadas e coxinhas para as encomendas que a senhora pegava, né? Mas também servia como terapia, não servia? Enquanto eu estou fazendo picando, cortando ou ajudando os outros nem vejo o tempo passar! É por isso que a senhora sempre estava de bem com a vida?”

“É, filho. Essa coisa de terapia é falta do que fazer. Quando você tem que empanar umas mil coxinhas o tempo voa e os problemas passam.”

“Mãe, tem um psicólogo húngaro, chamado Csikszentmihalyi, que diz que encontramos a felicidade quando estamos completamente imersos numa atividade. Ele chama isso de fluxo, diz que isso acontece quando estamos colocando todo nosso potencial e talento numa atividade e entramos em pleno contato com nossas emoções.”

“Não sei desse tal de fluxo, filho. Sei das contas que eu tinha para pagar e cuidar da casa e de todos vocês. Mas eu fazia os salgados com gosto, tentava sempre fazer bem feito.”

“Mãe, tem também um sociólogo norte-americano, o Sennet, que escreveu um livro sobre o papel do artesão na sociedade contemporânea. Ele fala do impulso intrínseco que as pessoes possuem em executar bem uma tarefa, e que a motivação é mais importante do que o talento para se tornar um artesão consumado.”

“Filho, você fica falando essas coisas na cozinha?”

“Não, mãe. Só fico observando. É bonito ver todo mundo começar do zero todo dia de manhã e entregar mais de cem refeições em apenas uma, duas horas. Tem gente ali que há um ano não sabia pegar numa faca. É bonito ver a concentração, o tal do fluxo. O chef dá uns berros de vez em quando, mas percebi o orgulho de todos quando terminam de servir.”

“Ele gritou com você, filho?”

“Não, mãe.”

“Você fez tudo direitinho?”

“Mãe, errei em alguns cortes, e tive que jogar fora e começar tudo de novo. Soltei uns dois ceviches sem a finalização correta, mas mãe… eu estava em estado de fluxo! Faz tempo que eu não sentia isso! Fazer apresentação de powerpoint não dá essa sensação!”

“E agora, filho, você vai tirar umas férias?

“Não, mãe, eu vou passar uma temporada em outro restaurante.”

“Filho, você vai abrir um restaurante?”

***

Meus agradecimentos ao Fabio Barbosa e a à toda equipe do La Mar onde passei os últimos quinze dias. Aos amigos que foram me visitar (e que me proporcionaram uma pausa do calor da cozinha acompanhada de uma cerveja geladinha.) Aos amigos que apareceram e puderam comprovar que eu estava no fluxo, porque não consegui reconhecê-los, mesmo com o restaurante vazio.

Um agradecimento especial e um convite ao cliente da mesa 19, sobre quem falei a semana passada: chame a mulher, o marido, a mãe… venha jantar no Epice, onde vou estagiar nas próximas semanas.

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Episódio 2: Querido cliente da mesa 19

Caro cliente: você chegou na quinta-feira, por volta das 13:10 e sentou-se, sozinho, à mesa 19. Ou sozinha – da posição onde eu estava, na cozinha, não podia ver se você era homem ou mulher.

Tanto faz, ninguém gosta de almoçar desacompanhado. Ou teria sido um daqueles dias na firma? Final de ano, planejamento, metas, você precisava de uma pausa solitária antes da longa tarde de reuniões. Fugiu dos colegas, disse que tinha que “resolver umas coisas”, veio caminhando indeciso pelo bairro do Itaim e então escolheu comer algo leve e refrescante: um ceviche!

Eu, caro cliente, estava no meu terceiro dia de estágio, e o primeiro dia nem conta, porque só fiquei observando. Aprendi rapidamente a desviar-me do caminho quando alguém grita “Queima! Queima!”. Na cozinha, isso é sinal de que alguém com uma panela quente ou uma faca está vindo em sua direção. Bem parecido com aqueles momentos em que você tem o seu dia todo planejado e chega uma demanda sem pé nem cabeça do vice-presidente. Talvez você possa adotar isso no escritório, usar no campo “Assunto” do email ou sair da sala do chefe falando bem alto: “Queima! Queima!”. Todos entenderão seu momento, caro cliente, e se desviarão de você.

A outra coisa que aprendi rápido, cliente, é que o dia começa bem cedo e com muito trabalho para que você possar fazer seu pedido e mergulhar despreocupado no seu smartphone. Às sete da manhã já estamos abrindo peixes, limpando camarão e cortando cebolas. Mas até você chegar e pedir um ceviche clássico, eu só tinha transportado gelo e picado salsinha. E bem naquele dia, um cozinheiro tinha faltado.

O chef virou para mim e perguntou: “Você já sabe fazer um ceviche clássico?” e eu não tinha como dizer não. Ceviche clássico é composto de peixe em cubos, sal, limão, pimenta, coentro, salsão e leche de tigre. Você pesa o peixe, mistura tudo na ordem certa, coloca no prato e entrega para o garçom. Naquele instante em que ouvi “Você já saber fazer um ceviche clássico?”, cliente, parece que me cresceram um seis braços e eu me tornei um polvo. Os braços 2, 3 e 5, queriam pegar a tigela, o braço 4 foi mais rápido e pegou o peixe antes que tigela tivesse chegado à balança, enquanto o braço 1 ficou sozinho na bancada com uma colher de pimenta. O braço 6 enfiou no bolso e gritou, em pânico: QUEIMA! QUEIMA!

Com um certo esforço consegui coordenar os seis braços, servi seu ceviche orgulhoso e corri até a pia para ver se o prato voltava vazio. Você demorou para devolver o prato, maldito smartphone! Mas obrigado, cliente da mesa 19. Você me fez ganhar o dia, o ano: foi responsável por eu soltar pela primeira vez um prato em uma cozinha profissional. Até estufei o peito e me senti bacana no meu uniforme.

E agora, uma palavra com os clientes da mesa 26: vocês chegaram logo após o cliente da mesa 19, pediram quatro ceviches diferentes entre si ainda e MUDARAM o ingrediente de um deles. Isso não foi legal, mesa 26.