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Pitangas

Os pés pisando em pitangas,
as tranças soltas no vento:
caminha a menina pelo pomar.

Os pés vermelhos de tinta,
nas nuvens perdido o olhar.
Por que não pintar?

Os pés pisando em pitangas,
pinta a menina formas no ar.
Bola barco balanço pião

Os pés pisando em pitangas,
brinca a menina no ar:
De onde vem o olhar?
Onde acaba o pomar?
Onde penduro o balanço
quando a brincadeira acabar?

Os pés pisando em pitangas,
pinta a menina um filosofar.

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Reflexão

Entre blogs, críticos e profiteroles

Quase de férias, corri ao “Entre Estantes e Panelas”, evento com curadoria do Carlos Alberto Dória e Alex Atalla, que periodicamente reúne gente interessante, no teatro da Livraria Cultura em São Paulo, para discutir temas ligados à alimentação.

Dessa vez, o tema era “Blogueiros da Alimentação. Tema, por si só, curioso. Afinal, quem são essas pessoas que se interessam por blogs e por comida, ao mesmo tempo?

O quase-debate (tempo e formato não ajudam muito) foi mediado pela Paula Pinto e Silva, que abriu com uma rápida visão geral sobre o universo dos blogs. Não vou comentar todo o evento (Joyce Galvão fez um bom resumo no Gastronomicas), mas apenas destacar o rumo que tomou, sequestrado pelo tema da oposição entre crítica gastronômica profissional e amadora (para o incomôdo da Paula, moça que sabe das coisas e queria discutir o fenômenos do blogs em um contexto mais amplo. Ah, esses antropólogos…)O fato é que a tal crítica “amadora” é formada por gente metódica, e que possui repertório para analisar e opinar sobre as casas que frequenta.

Alex Atalla tomou o microfone no final para questionar a legitimidade dos blogs e assumiu nunca ter lido nenhum deles. Luiz Américo confessou que acha o Alhos uma revelação da crítica. O debate terminou quando esquentou, mas ficou evidente que os blogs incomodam e são complementares à crítica institucionalizada. O fato é que o mundo 2.0 também chegou ao restaurante. Um mundo em que a voz individual e coletiva possui um canal para se expressar.

Ontem, já de férias, decidi sair para jantar com minha esposa. Preterimos alguns de nossos restaurantes favoritos para conhecer o Arturito, elogiado recentemente pelo Botecodojb. Na preguiça de um dia sem compromissos, cheguei a pensar em consultar o Que Bicho e o Alhos, mas acabei não fazendo.

Chegando ao Arturito, não gostei daquela cara de balada de modernos, embora a maior parte dos frequentadores fosse da nossa faixa etária. Ou até bem mais alta: ao meu lado, na espera, estava Arnaldo Jabor.

Adoramos a comida do restaurante, mas a experiência foi péssima. Erros básicos e patéticos do serviço, do começo ao fim. Desde 1:20 minutos na espera (demos um desconto para isso, afinal podia ter sido apenas um azar), até garçons que não enxergavam nossa mesa. Café servido apenas para um. E para, finalizar, conta cobrada com valores a mais.

Era impossível sair dali sem dar um feedback. Chamamos o maitre. Ele nos ouviu educadamente. Ofereceu-nos de não cobrar a conta. Eu me dispus a pagar os pratos principais. Ele não aceitou. Achei que ele foi muito profissional, e quebrou nosso juramente de nunca mais voltar ao lugar (juramento selado pelos deliciosos profiteroles da casa).

Mas toda esta experiência me fez lembrar novamente da discussão da segunda-feira. Ao acordar esta manhã, ainda impactado por uma noite que deveria ter sido boa e perdeu seu encanto, decidi pesquisar os blogs falam do Arturito.

Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, em fevereiro, ele já tinha criticado duramente o Arturito. Consultei o Alhos, e notei que ele já havia dado uma dica sobre o ambiente de modernos que me incomodou. E Botecodojb também teve lá seus problemas. Ou seja, crítica amadora serve ou não como uma referência? Um blogueiro estabelece uma relação com seus leitores uma relação intimidade, que de alguma forma, mídias tradicionais não conseguem capturar. Quem não entendeu isso ainda, vá ler o Manifesto Cluetrain. E notar que o mundo mundou.

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Viajar e comer

Três pianos e um cadáver

Fevereiro de 1998, lua-de-mel

Chegamos a Lugano um pouco tarde, cansados pelas estradas sinuosas que levam da Suíça à Itália. Mais cedo no mesmo dia tínhamos atolado na neve, numa estrada deserta. Momentos de pânico gelado.

Não me lembro do critério de escolha do restaurante para jantar. Se é que eu tinha algum critério naquela época. Foi provavelmente uma indicação do hotel.

Tampouco me lembro do que comemos. De entrada, tomei uma sopa de tartaruga. Que me fez ficar pensando até hoje que gosto tartaruga tem. Ou então que todo caldo Knorr é feito de tartaruga.

Mas o pianista era inesquecível, a começar pelas evidentes peruca e dentadura. E as canções de sempre, tocadas com os arranjos de sempre. Richard Clayderman de cantina, com arpejos intermináveis que transformam cada nota em outras dez, e tornam todas as canções iguais.

Ele também cantava. Eu pedi “Io che amo solo te”. Ele cantou a primeira estrofe e começou a repetir interminavelmente o refrão. Intensificou os arpejos para disfarçar que não lembrava da letra. A canção ficou irreconhecível como a tartaruga da sopa. E o pianista olhava para nós (lembrando da sua longínqua lua-de-mel?) e sorria continuamente um sorriso de teclado bem polido.

Abril de 2009, viagem a trabalho.

Na correria de uma viagem a trabalho, tento dar uma escapada para conhecer os restaurantes locais. Em Recife, me indicaram o Mingus, restaurante de comida contemporânea na Boa Viagem.

Entrei animado com o ambiente – meia luz agradável, grandes fotos de músicos de jazz nas paredes. O lugar onde você imaginaria comer algo bem arranjado, ouvindo Charlie Parker.

Mas no meio no salão tem um piano. E um pianista tocando as canções de sempre, com os arranjos de sempre e arpejos intermináveis que transformam cada nota em outras dez, e tornam todas as canções iguais.

Nada podia ser mais distante do ambientação do restaurante, que me serviu uma boa massa com lagostins com um tempero sutil de erva-doce.

Voltei ontem ao Mingus, e o mesmo pianista estava lá. Deprimente, num restaurante quase vazio, você jantar sozinho e ainda ouvir “My Way” do Frank Sinatra, naquele arranjo Ray Coniff. Enquanto isso, da parede, Tom Jobim, Charles Mingus e Charlie Parker ficam espiando o que você come.

De vez em quando

O L´Hotel é um dos poucos locais perto do meu escritório silencioso o suficiente para você bater um papo tranquilo no almoço. Menu executivo bem feito, mas caro. Deve ser o preço do silêncio.

Na escadaria que leva ao restaurante, entre um lance e outro, o hotel se orgulha de ter uma tapeçaria do século XVI. E no final do segundo lance, um piano que toca sozinho, com arpejos intermináveis que transformam cada nota em outras dez, e tornam todas as canções iguais. Isso mesmo, não tem pianista. Dá calafrios ver aquelas teclas se movendo, dedilhadas por um fantasma.

Quando eu tinha uns 12 anos, li um romance de John Dickson Carr chamado “Os Crimes do Unicórnio”. O morto ficava escondido atrás de uma tapeçaria, e num momento fatal do livro, despencava escada abaixo.

Sempre que passo por ali e piano está tocando o tema do Poderoso Chefão, subo as escadas hesitante. Tenho a certeza que ainda vou ver um cadáver despencar dali.

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Cozinhando para amigos

Onde não se mede a saudade pela latitude

Da varanda, víamos o sol desmaiado refletindo nos prédios. Vicente, o mais bebê das crianças, ainda sorrindo, já tinha os olhos pesados de sono. As outras corriam pela sala enquanto as mães conversavam. O DVD já há algum tempo repetia continuamente a vinheta de abertura.

Na cozinha, coloco água a aquecer para o café e o Marcelo cuida da louça. Rodrigo, o gaúcho da turma, comenta que da próxima vez faremos um churrasco. Sobre o fogão, a farofa, o pernil ainda pela metade, alguma pouca salada murcha. E a calda perfumada que sobrou da compota da kinkan. Marcelo fita a calda com um olhar comprido de mineiro querendo alguma coisa.

– Um desperdício jogar fora esta calda. Ela ficaria perfeita em cima de um “bolim”…

Quase como mágica, eu abro o armário e tiro três muffins de goiabada que eu fizera no dia anterior. Marcelo corta os muffins, despeja a calda.

Sentamos à mesa e olhamos em volta, para nossas mulheres lindas e nossas crianças que vão crescendo. Lembramos dos nossos pais, espalhados pelo Brasil de norte e sul, ou morando em outras terras, onde a distância já não se mede pela latitude, mas pela saudade.

O café está servido. Feliz Dia dos Pais.

Bolinho com calda de laranja
Marcelo e Rodrigo atacam os muffins
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Um velho gosto conhecido

Capa do número 1 da revista GOSTO
Capa do número 1 da revista GOSTO

O gosto não é mais o gosto que aprendemos. Foram necessários muitos avanços da ciência para botar abaixo o conhecido modelo de fisiologia do gosto proposto por Brillat-Savarin no século XVIII. Brillat não perdeu sua importância, mas precisa ser considerado como ponto de partida, e não ponto de chegada.

O editorial da número 1 da revista Gosto, publicação da Editora Isabella, dirigida por J. A. Dias Lopes afirma que o nome da revista foi escolhida em função da importância de Brillat para a literatura gastronômica. Mas que gosto tem a revista? A nova fisiologia do gosto leva em conta como o cérebro processa e sintetiza a informação proveniente de todos os sentidos, reforçando a importância do visual e textura do prato. Comecemos, portanto, pelo visual da revista, que é bonita. Formato bacana, papel bom, diagramação clean – embora com pouca ousadia.

Mas um certo gosto conhecido começa a aparecer à medida em que leio as matérias. É fundamental para um interessado em alimentação conhecer a história de pratos, técnicas e ingredientes. Mas a história, novamente, é apenas ponto de partida para discussões discussões contemporâneas interessantíssimas. As duas matérias sobre Brillat-Savarin trazem seu perfil, mas passam completamente ao largo da compreensão moderna do gosto, com todos os avanços científicos dos séculos XX e XXI. O mesmo acontece com a matéria sobre o leite condensado, que buscou a opinião de Carlos Alberto Dória, que tem instigado a discussão sobre este tema, mas não aprofunda a questão. E encerra com a tradicional receita de pudim da Nestlé.

Em termos de receitas (outro tema contemporâneo interessantíssimo – alguém aí quer discutir?), a revista oferece o mesmo que suas concorrentes. Receitas de chef, sem cuidado nenhum com o leitor final. Quem usa 12 gramas de alho em casa? Receita de brioche – praticamente de domínio público. E afinal, quem quer preparar Poupeton Brillat-Savarin?

Onde fica a alma brasileira defendida no editorial? Este tema também está no centro da discussão gastronômica atual. Mas não enxerguei nada além da bela matéria sobre a culinária do Vale dos Vinhedos escrita por Xavier Bartaburu.

Falta, em resumo, mais frescor nos ingredientes da revista. Faltam temas e pontos de vista mais contemporâneos em vez de discussões subjetivas sobre a melhor forma de servir feijoada. O que faz uma foto de brioche na capa do número 1 de uma revista que afirma ter “alma brasileira”? Achei uma baita mancada editorial. E termino de ler a revista com aquele gosto de pão amanhecido na boca. Espero um próximo número mais fresquinho.

***

Não comentei a seção de vinhos porque não é minha especialidade. Gostaria de ouvir os especialistas sobre este assunto.

Para quem estiver interessado no tema “gosto”, recomendo a leitura da edição especial “A ciência na cozinha”,  preparada por Carlos Alberto Dória para a Scientific American Brasil.

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A origem da culinária brasileira

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“Papai, parece um porquinho!”

A receita é do Carlos Siffert: frango assado com limão siciliano.

Mas o “modo de fazer” não prevê uma ajudante de dois anos e meio.

Primeiro, a ida ao supermercado para comprar o frango e as ervas.  Bem ao lado da gôndola do frango, uma degustação de queijo. Tentei passar de fininho, meio de lado, mas não escapei:

“Papai, quero queijinho”.

O problema é que ela quer provar o queijinho repetidamente. Da próxima vez, levo ao mercado uma coleção de perucas, óculos e bigodes postiços para poder repetir a degustação umas trinta vezes.

Com o frango e as ervas em mão, fomos para casa.

“Papai, posso ajudar?”

E lá vem ela arrastando um banquinho para ficar ao meu lado na pia. Traz seu pratinho rosa de plástico, sua faquinha lilás e seu garfinho branco.

Primeiro, picar as ervas. Tentei disfarçar colocando alguns galhos de tomilho no seu prato, mas sabe como é criança. Ela queria mesmo é picar o tomilho de verdade. Na prática, o que ela faz é pendurar-se no meu braço sob o pretexto de me ajudar a picar tudo.

Levei o dobro do tempo para picar tudo, fazer a manteiga de ervas e besuntar o frango. A essa altura, obviamente a Lívia também já estava besuntada.

Quando reservo as ervas e pego o frango, o momento da revelação. Lívia olha para aquele bicho rosado e exclama:

“Papai, parece um porquinho!”

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Tarde infinita em Porto de Galinhas

Dez anos depois, voltamos ao Beijupirá.

Eu me lembrava do piso de concreto incrustado com velhos garfos e colheres. Das cadeiras rústicas, das mesas brancas com toalhas floridas (abra e feche os olhos rápido: você está na Grécia!). E dos peixes.

Dessa vez, chegamos no meio da tarde de um feriado. Mesas vazias, a brisa mole levanta as pontas das toalhas das mesas, faz voar um ou outro guardanapo. As garçonetes de saia colorida acodem.

Pedimos, de entrada, uma casquinha de siri e um caldinho de peixe. A casquinha do Beijupirá é cremosa, servida numa xícara de barro. Os outros pratos também são assim – cruzam fronteiras discretas, sem se prender a convencionalismos. De um lado peixes regionais, de outro temperos orientais. Beijupirá, tamarindo. Carne de charque, cardamomo. Sem exageros.

A Ângela pediu uma “Lagosta Metida” – lagosta em cubos na manteiga com arroz de mostarda, bolinhos de batata-doce com gengibre e coco. Eu comi um “Peixubá”, peixe frito, e depois imerso em molho de leite de coco com dendê, arroz branco e alho crocante.

Uma pancada de chuva rápida nos acompanhou na sobremesa. Sorvete de tapioca com filhoses e mel de engenho.

As gotas d´água ampliavam os últimos raios de sol.  Entre Pernambuco e Tailândia, parecíamos ilhados numa tarde infinita.

***

R. Beijupirá (Porto de Galinhas)
tel: (81) 3552-2354
(www.beijupira.com.br)

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O misterioso fenômeno do sorvete de rapadura à moda medieval

Com os colegas da pós, só estava rolando papo-cabeça: a memética e fim das receitas como bastião da cozinha ocidental. A influência das batatas na ascensão das classes proletárias. E por aí vai…
Até que este papo todo despertou o apetite, e finalmente começamos um papo mais apetitoso.
A Gracinda puxou a fila convidando todos para uma ida ao Mocotó — botecão que existe há 35 anos, mas tem sido incensado nos últimos tempos pelo trabalho do Rodrigo Oliveira, que deu um tapa nas receitas sertanejas tradicionais do pai e foi até eleito chef revelação pela Prazeres da Mesa.
O Mocotó fica na Vila Medeiros (região da Vila Maria, zona norte de São Paulo), muito longe do circuito Jardins-Itaim-Vila Olímpia. A distância deve contribuir para a alta freqüência e as filas no fim-de-semana. Na falta de praia, paulistano adora um programa off-circuit.
Obviamente a comida também é boa e barata. Carne de sol no ponto. Mandioca derretendo. Um escondidinho que parece um suflê do Cordon Bleu. E muita pimenta biquinho.
Experimentamos um pouco de cada prato, enquanto discutíamos um texto do Norbert Elias do processo civilizatório e dos modos à mesa. Neste texto, o sociólogo alemão descreve o processo de construção social dos modos à mesa, desde a época que todos metiam a colher no mesmo prato até os “sofisticados” hábito ocidentais contemporâneos, em que se leva a comida à boca com o garfo para se evitar o vexame dos dedos sujos. Nos primeiros tratados de etiqueta da era moderna, uma das recomendações era jamais colocar de volta a colher no  prato coletivo em que todos se serviam.
A nossa discussão prosseguia civilizada, até que decidimos pedir uma sobremesa de cada tipo para que todos pudesssem experimentar. Raspadinha de cajamanga, pudim de tapioca, cocada cremosa, mousse de chocolate com cachaça e sorvete de rapadura.  Bastou chegarem os doces para que a civilizada discussão se interrompesse, e todos nós regredíssemos ao glutão medieval que mora dentro de cada um. Quem se importava de dividir o prato com conhecidos há apenas três semanas? Metemos as colheres em tudo, raspamos o fundo  das taças e lambemos os pratos.
O sorvete de rapadura com calda de catuaba é um espetáculo. O pudim de tapioca é substancioso e tem uma boa calda. Só não gostei do musse de chocolate com cachaça — valeu a tentativa, mas com conhaque ainda é melhor. Para finalizar, um licor de cachaça com baunilha.
E o Norbert, se remexendo no túmulo, tentando entender o misterioso fenômeno dos pós-graduandos do século XXI que deitaram a perder cinco séculos de civilização à mera vista de uma sorvete de rapadura.

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Aos 37

Imagine uma estrada em meio à serra. Plátanos e araucárias acompanham curvas estreitas e vagarosas.

Imagine uma pequena ponte de madeira, uma vila com casas de pedra em semicírculo, uma fonte no meio.

Imagine um jardim de hortênsias azuis e ao fundo um galpão de tijolos avermelhados. De dentro do galpão, pela porta envidraçada, você vê as colinas onde cai uma chuva tão mansa que parece névoa suspensa no ar.  E o cheiro picado de grama e chuva e frio é substituído pelo aroma penetrante e adocicado de alho, noz moscada e creme de leite.

Imagine, por fim, que toca uma trilha sonora baixinha, romântica e perfeita. E que você está acompanhado de um grande amor.

Era mais ou menos assim que eu queria comemorar meu aniversário na semana passada. Ou seja, acompanhado da Ângela e da Lívia, e de uma refeição inesquecível.

Mas eu vinha de uma semana de comida mais ou menos. Comida mais ou menos é aquela comida sem inspiração que você é obrigado a comer quase todo dia quando trabalha. Ou comida pretensiosa, que gostaria de ser fina não passa da boa intenção (conhecem o velho ditado: “De boas intenções, a seção de congelados está cheia”).

Eu almoçara no Ça Va com a Mônica Tutiya, celebrando seus novos rumos profissionais. Mas a comida do Ça Va, bistrô acolhedor que fica próximo à Avenida Paulista, é bem mais ou menos. Se quiser ir, leve boa companhia, peça vinho e esqueça a comida.

Na sexta-feira, dia do meu aniversário, tive um almoço de trabalho com a Gabriela Romeu, repórter do caderno infantil da Folha de São Paulo, Renata Bortoleto, que cuida do Brincando na Rede, e a Regiane, nossa assessora de imprensa. O almoço foi bom e o papo foi ótimo. Mas o bacalhau do “Gato que Ri” era apenas mais ou menos. Apresentação sem graça, arroz derramado sobre o prato sem cuidado. E as meninas todas de regime que me deixaram constrangido de pedir um pudinzinho na sobremesa.

Minha chance de uma boa refeição de aniversário estava, portanto, em Cunha, onde fomos passar o fim de semana. Chegamos tarde, tomamos apenas uma sopinha de fubá. No dia seguinte, o programa era visitar as cerâmicas da cidade, quem sabe ver alguma abertura de forno. Eu que já imaginava pão quentinho fui avisado pela minha irmã artista que forno, em Cunha, significa belas cerâmicas. E obviamente, à noite, um bom jantar.

O almoço foi ótimo, com direito a bife acebolado e tubaína, no Restaurante da Dona Francisca, uma portinha ao lado do Mercado Municipal. As cerâmicas são lindas. Mas o jantar me deixou decepcionado, e eu só tinha o domingo para ainda tentar encerrar uma semana com o prato dos meus sonhos.

Pergunta dali, pergunta daqui, e finalmente encontrei uma indicação que parecia boa: imagine uma estrada em meio à serra –  estreita, de curvas vagarosas, acompanhada  por plátanos e araucárias. Uma pequena ponte de madeira, uma vila com casas de pedra em semicírculo, uma fonte no meio. Um jardim de hortênsias azuis e ao fundo um galpão de tijolos avermelhados. De dentro do galpão, pela porta envidraçada, você vê as colinas onde cai uma chuva tão mansa que parece névoa suspensa no ar.  E o cheiro picado de grama e chuva e frio é substituído pelo aroma penetrante e adocicado de alho, noz moscada e creme de leite. Imagine, por fim, que toca uma trilha sonora baixinha, romântica e perfeita. E que você está acompanhado de um grande amor. Ou de dois.

O chef do Villa Favorita é Ernani Tedeschi, que antecipando-se à abertura de sua própria pousada, inaugurou um restaurante. Ex-engenheiro, autodidata na cozinha, prepara massa fresca, sovada à mão, com ovos caipiras e receitas de família. A Ângela comeu um ravióli de bacalhau. Eu comi um ravióli de funghi que me chamou a atenção pelo equilíbrio de tempero. Funghi raramente é minha escolha em restaurantes, porque é comum o gosto forte sobrepor-se a todo o restante do prato. O ravióli de Ernani, além da massa fresca e deliciosa, tinha um sabor equilibrado, com um recheio de carne moída bem fininha, quase cremosa na sua textura, de onde escapavam pequenos pedaços de cenoura e cebola fininha.

A Lívia acordou, com fome, quando a conta já estava na mesa. Acabamos ficando mais um tempo enquanto Ernani preparava um talharim a bolonhesa. Que a Lívia não comeu inteiro e me deu a chance de um repeteco.

Imagine uma estrada sinuosa, uma cidade do interior, com uma praça e uma igreja matriz. Imagine velhos sentados, pipoqueiros e o alto-falante da igreja ressoando piano pela praça. A Ângela e a Lívia sentadas no banco, comendo pipoca. Eu, pensando nos caminhos que vou trilhar nos próximos trinta e sete anos.

Imagine se dou a sorte de encontrar uma estrada sinuosa, uma ponte de madeira, uma cozinha de pedra…

***

O Villa Favorita fica no km  65,2 da Estrada Cunha-Paraty.